A guerra contra a falsidade

O despertar de minha consciência deveu-se à percepção da falsidade no mundo. Despertando, o fantasma decidiu travar combate. Oh, guerra inútil, que tanto me atribulou!… Condenar a falsidade é ver-se rapidamente tomado do nojo para com as pessoas, é afastar-se, gradativamente, de todos, é tornar-se um misantropo. E, sempre em silêncio, transformei-me a mente em um grande tribunal. Repugnando-me a própria essência, avesso à simpatia, não poderia vivenciar fim diferente… Há uma dose de falsidade sem a qual o mundo não existe. As relações, se não estúpidas e superficiais, valem-se da dissimulação. E o interesse será sempre o principal motor das ações humanas. É aceitar, saber lidar, ou encontrar, em pouco, a existência insuportável.

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Uma feira de personagens culturais

Trecho de Luiz Felipe Pondé em seu Ensaio Teologia do niilismo – A inteligência do mal, escrito originalmente para a revista russa Dostoievski y mirovaia kultura e disponível em seu Do pensamento no deserto:

Religião e teologia não são áreas do conhecimento com o mesmo valor epistêmico que biologia ou sociologia. Evidentemente que livros continuam a serem escritos em ambas as áreas, mas livros não são sinais claros de valor epistêmico. Mesmo a filosofia da religião perdeu muito com a chamada morte da metafísica. O foco dissolutivo deste fato se encontra na inconsistência de qualquer forma de conhecimento que não relacione de modo produtivo a dedução racional com a indução empírica. É evidente a relação com a ciência moderna como referencial. Mesmo que muitos intelectuais “brinquem” de pós-modernos afirmando que tudo é “simulacros ou narrativas”, aviões voam e transplantes de órgãos acontecem seguindo as “convenções” da física e da biologia. Mesmo que descubramos que as mesas são constituídas de “espaços vazios”, continuaremos a colocar pratos em cima dela sem que caiam “no vazio quântico”. Além dessas “brincadeiras quânticas”, o fato é que a insegurança das construções teológicas (fruto da dúvida cética científica) é obrigada a enfrentar não só o fracasso da metafísica diante do tribunal da razão sensorialmente sustentada (drama mais ligado às ciências duras ou naturais), como também a redescoberta da sofística, agora encarnada na antropologia cultural (realidade mais típica das ciências humanas): “de qual deus você está falando?” Podem existir quase tantas teologias quanto restaurantes étnicos. É como se com a morte da metafísica, o céu tivesse ficado vazio, e sobrou apenas uma feira de personagens culturais.

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Don Quijote de la Mancha, de Miguel de Cervantes

Mal começo estas linhas e sei que me faltarão palavras… Don Quijote de la Mancha, clássico dos clássicos, obra entre as maiores de toda a literatura universal, primor em todos os quesitos. De tudo o que já li, duas obras suscitaram-me algo que sou incapaz de descrever, um sentimento sem nome, a impressão de qualquer sorte de magia operando, como se houvessem sido escritas por algo diferente de um ser humano; são elas a Commedia, de Dante, e Don Quijote de la Mancha. Mas por quê? Eis o fascinante… El ingenioso hidalgo já foi objeto de obsessão de incontáveis artistas, inspirou muitas e muitas obras e não consigo imaginar alguém que, conhecendo-lhe a história, não se compadeça. Don Quijote de la Mancha faz despertar no leitor uma compaixão infinita, uma relação de afeto real para com a dupla Don Quijote e Sancho Panza. Tentemos esmiuçar a magia… Cervantes, de início, constrói uma união entre personalidades opostas: o caballero andante Don Quijote é, física e psicologicamente, o oposto de seu escudeiro Sancho. O primeiro habita o universo dos sonhos, submete a realidade ao imaginário, interpreta a existência quase em delírio. Já o segundo personifica o pragmatismo. O efeito dessa junção de contrastes é uma harmonia imensa e crescente durante a obra, posto Sancho desenvolver-se de forma a paulatinamente partilhar dos juízos de seu amo. Assim, Cervantes edifica uma relação de amizade que talvez não tenha par na literatura universal. A fidelidade de Sancho comove: quando fala, há sempre uma tentativa velada de conciliação e, acima de tudo, humildade. Já Don Quijote, não podemos deixar de perceber-lhe a ternura por trás do perfil beligerante. A narrativa avança exibindo um intenso conflito entre realidade e imaginação e el caballero, megalômano incurável, que desde o início mostra-se incapaz de perceber a própria mediocridade, gradativamente sucumbe ao próprio imaginário, perdendo a consciência. A realidade impõe-se e escancara o absurdo de tudo quanto Don Quijote sonhava. Mas deixa em aberto a pergunta: será mesmo que Don Quijote não viveu os próprios sonhos? Será mesmo a realidade prática senhora da existência? E, confrontados com um personagem falho, essencialmente frágil, cujas ações sempre remetem ao ridículo, mas que, ainda assim, acredita, não podemos deixar de julgá-lo movido a algo que nos escapa ao entendimento. Don Quijote de la Mancha é obra que dá vida ao mágico e evoca o divino. E o leitor não fecha o livro sendo a mesma pessoa: a doçura que permeia a narrativa impregna e amolece qualquer caráter. A existência, pois, abranda, e aprendemos — ainda que não consigamos explicá-lo — que a vida é mais bela quando não levada tão a sério.

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Filosofia na literatura e literatura na filosofia

Engraçadíssimo meu perfil como leitor: na literatura, irrito-me facilmente com meia página de small talk; na filosofia, ainda que aceite textos calcados exclusivamente na lógica e precisão, textos, em suma, a aparentar acadêmicos ou científicos, impressiono-me ou, antes, busco a potência de expressão em filósofos, e agrada-me o uso de imagens e metáforas a representar ideias. Quer dizer: gosto da filosofia na literatura e da literatura na filosofia. Curioso…

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