O meu bisavô materno

Cá estamos novamente: diante da tela em branco, pensando na vida, sorrindo e petiscando amendoins. Sei que o tema do dia não me agrada; ou melhor, desagrada-me profundamente. Mas tenho duas opções: calar-me ou escrever. A segunda resguarda o silêncio e ajuda-me contra o tédio. Vamos dela.

Há uma reflexão filosófica que me importuna com regularidade espantosa, e pode resumir-se na seguinte pergunta: “Qual o nome do meu bisavô materno?”. Sempre me ocorre da mesma maneira. De início, a pergunta toma-me a mente; eu percebo e silencio. Então, recusando-me a respondê-la — e eu já sei que sei a resposta — tento pensar em outra coisa, qualquer coisa. Mas me volta a indagação, renitente e insuportável. Vejo-me obrigado a replicar o óbvio: “Eu não sei”.

Tenho de admitir: a reflexão é-me de grande valia quando me vejo a mente dar as mãos à estupidez, pensando minha vida ter alguma importância. Minha mente também é cínica… Estou às vezes a julgar: “Isso pode ser útil a alguém”, mas ela vem e interpela-me: “E como é mesmo o nome do seu bisavô materno?”. Todas as vezes, respondo em espanto: “Eu não sei”.

E a reflexão prossegue, sempre, da mesmíssima maneira. Busco a resposta, não encontro. Penso: “Não é possível!”. E forço a memória, procurando contatos comuns: “Alguém já deve ter-me dito…”. Insisto até desistir, quando me vem um lampejo: “O nome de meu bisavô eu não sei, mas certamente está na ponta da língua o nome de minha bisavó materna!”. Faço-me a nova pergunta: “Qual o nome de minha bisavó materna?”. A resposta tarda, mas vem óbvia e idêntica: “Eu não sei”.

Então começo a torturar-me: “Quer saber, preciso de um cigarro!”. Levanto-me da cadeira: “Cigarro faz bem para a memória!”. Vou à janela e ponho-me a fumar. É impossível que eu não saiba o nome de meus bisavós maternos! Devo estar com algum problema, e o cigarro ajudar-me-á a solvê-lo. Fumo observando a fumaça: sou fascinado pela fumaça. Ela brota, vigorosa e espessa, da ponta do cigarro; sobe ao céu como que dançando; mas, antes que a dança possa entreter, possa ensaiar algum ritmo, subitamente a fumaça se esvai, perde-se, não deixando de si nenhum vestígio.

O cigarro faz efeito; tenho uma nova ideia: “Certamente o problema está em minha família materna!”. Articulo nova pergunta, animado, a esperar resultado diferente: “Qual o nome de meu bisavô paterno?”. Reflito. Em poucos segundos, perco o sorriso da face. O cérebro ainda trabalha, esforçado. Pois me ponho inquieto, a querer negar a resposta óbvia. Mastigo amendoins e penso: “Bisavô é o pai do meu avô, ou da minha avó. Dos dois, um eu acerto!”. Mas a resposta é a mesma, rígida e impenetrável: “Eu não sei”.

Começo a meditar que é uma questão de honra: preciso saber se descendo de padre ou ladrão! Mas forço a memória e me não lembro de nada, nenhum resquício de parente dizer Fulano de Tal ser estivador, marinheiro, padre ou dono de bordel. E aí está tudo: eu não sei o nome dos meus bisavós, simplesmente não sei e não há solução.

Irritado, alvejo-me a mente a pedradas: “Por que sempre a mesma pergunta? Por que a insistência?”. Mas sei que continuarei a perguntar-me, em obtusidade córnea, a ver se algum dia encontro resposta diferente. Não encontrarei.

Finalmente suspiro, impotente, perdendo qualquer ilusão. Já não há amendoins e reflito, impedido de mastigar: “Qual, então, a razão de tudo isso?”. A conclusão é óbvia, e também sempre a mesma. Apego-me aos cacos: “Que me valha a consciência, pois, de mim, não sobrará uma única e escassa palavra”.

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História de Dom Pedro II, de Heitor Lyra [2]

Disse ontem algumas palavras sobre este livro; insuficientes, porém. Enfatizei meu respeito pelo autor, mas me esqueci do protagonista. Retrato-me nesta nota: Dom Pedro II é o maior exemplo de honra e prudência em toda a história do Brasil. Governou por mais de meio século, sendo sempre um ícone de tolerância e despego do poder; o Brasil pôde, graças ao seu temperamento, realizar uma troca de regime pacífica — quantos países podem gabar-se do mesmo? — e em troca, foi expulso do país como um ladrão, condenado ao exílio e à tristeza, passando seus últimos dias numa solidão desoladora. Quando morreu, solitário, dispondo de um saquinho com areia de Copacabana no bolso, os militares, liderados pelo abjeto Floriano Peixoto, negaram-lhe sequer uma representação diplomática no velório, que foi monumental, porém pago pela França, grata, entre outras coisas, por ter sido Dom Pedro II o primeiro estadista a visitá-la após arrasada pela Guerra Franco-Prussiana. O pungente de toda a história é que o “neto de Marco Aurélio”, como se lhe referiu Victor Hugo, resignou-se estoicamente em sendo alvo de cruel injustiça, crendo a história tratar de recompensá-lo. Hoje, bem sabemos, a memória de Dom Pedro II é inexistente; nossos estudantes não aprendem senão meia nota sobre sua vida e seu feitio. E está aí uma das belas ironias da história, muito bem representada pelo incêndio do Museu Nacional: sendo o museu, o caráter; e o fogo, a recompensa.

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História de Dom Pedro II, de Heitor Lyra

Este é, sem dúvida, o melhor livro de história que já li. Nesta obra, dividida em três volumes que somam pouco mais de 700 páginas, Heitor Lyra traça, numa escrita leve, precisa e apaixonante, o período mais glorioso de toda a história brasileira. Quem mo indicou? A resposta serve para todos aqueles que me importunam perguntando: “Como é possível admirar o Olavo de Carvalho?”. Como muitas outros livros, este só tive acesso em razão da recomendação do professor, que o classificou como “maravilhoso”. Dependesse das editoras, jamais o conheceria, posto só esteja disponível em sebos e em raríssimas unidades. Lembro-me de que, para reunir os três volumes, tive de pescar no Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo. Pois valeu cada centavo. E reflito: o que será que as escolas dão para os jovens estudar o século XIX? — não me lembro o que eu mesmo estudei… — Heitor Lyra teve acesso à melhor documentação possível sobre o período e, especialmente, sobre o maior símbolo do Brasil Imperial. O livro, segundo o autor, “foi escrito na Europa”, onde ele teve acesso à vastíssima documentação dos correspondentes estrangeiros do imperador e, ademais, teve aberto para si o “inestimável arquivo da família imperial brasileira”, disposto à época no Castelo D’Eu, aos cuidados de Dom Pedro de Orléans e Bragança, neto de Dom Pedro II. Na ocasião, Heitor Lyra foi o primeiro e único historiador a acessar este arquivo, que hoje está reduzido a cinzas após o incêndio no Museu Nacional. Penso, penso e hesito em colocar-me em palavras a frustração… O que incomoda é não ver novas edições dessa obra e de quase todos os bons livros de história que tive acesso; é contrastar o que encontro nos bons livros com a vaga e estúpida visão que inconscientemente nutria do período; é descobrir, de repente, que desconhecia quase todas as grandes figuras que o meu país produziu. Então reflito: por que se não encontra Heitor Lyra, ou Varnhagen, ou José Maria Bello numa Amazon? Parece-me que, descaradamente, houve e há um esforço a contar uma história alternativa do Brasil.

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É ela! É ela! É ela! É ela!, de Álvares de Azevedo

Fico a pensar que daria de nosso Álvares de Azevedo que, infortunadamente, deixou o mundo aos vinte anos de idade.

É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe murmurou — é ela!
Eu a vi… minha fada aérea e pura,
A minha lavadeira na janela!

Dessas águas furtadas onde eu moro
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas…
Eu a vejo e suspiro enamorado!

Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!

Como dormia! que profundo sono!…
Tinha na mão o ferro do engomado…
Como roncava maviosa e pura!
Quase caí na rua desmaiado!

Afastei a janela, entrei medroso:
Palpitava-lhe o seio adormecido…
Fui beijá-la… roubei do seio dela
Um bilhete que estava ali metido…

Oh! Decerto… (pensei) é doce página
Onde a alma derramou gentis amores;
São versos dela… que amanhã decerto
Ela me enviará cheios de flores…

Tremi de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu beijei-a a tremer de devaneio…

É ela! é ela! — repeti tremendo,
Mas cantou nesse instante uma coruja…
Abri cioso a página secreta…
Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!

Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim mais bela… eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!

É ela! é ela! meu amor, minh’alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela…
É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou — é ela!

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