Vou a São Paulo e, como sempre, fico a reparar o trânsito paulistano. É mesmo uma obsessão. Tomo um táxi, e despejo no taxista as minhas teorias. Ensino ao profissional do trânsito como se troca de faixa em São Paulo, o significado da faixa da esquerda, e lhe vou apontando o sentido implícito de cada movimento realizado por outros motoristas. Provo-o que o paulista sabe dirigir e tem educação. O sujeito logo perde a timidez e gargalha diante das histórias que lhe vou contando de outras paragens, até que enfim é convencido de ser feliz no trânsito mais lento do Brasil. Desço e já penso no próximo táxi, onde contarei novamente as mesmas histórias; Por vezes, chego a dividir o percurso em duas corridas para poder contá-las duas vezes. E acabo, assim, divertindo-me também. Enfim, nada tendo que ver com as provocações de meus personagens, saio sempre de São Paulo com a sensação de que o paulista é, mesmo, um sujeito boa-praça.
O escritor deve sempre se lembrar…
O escritor deve sempre se lembrar do exemplo de Dostoiévski que, sendo o mais ferrenho crítico do niilismo, é tido pelos niilistas como um dos seus. Isto só se dá porque Dostoiévski coloca-se inteiramente sob o ponto de vista de seus personagens, de forma que, quando estes se manifestam, são indistinguíveis as ideias de seu criador. Mais que esforço, atingir tal grau de manifestação artística exige uma predisposição: aquela que busca, sobretudo, fazer justiça ao objeto retratado; aquela que, numa palavra, chamamos de sinceridade.
Há uma maneira infalível de identificar…
Há uma maneira infalível de identificar a inclinação política dos escritores que abordam literariamente esta temática. A técnica é muito simples, e resume-se a verificar o tratamento dispensado aos personagens “maus”. De um lado, temos uma corrente que os cria sempre ambíguos, sempre complexos, nunca inteiramente maus; do outro lado, temos a corrente que não consegue pintá-los senão estereotipados, como representando o mal absoluto, desprovidos de qualquer virtude. Aqui se nota, em primeiro lugar, a radical diferença nos resultados: no primeiro caso, temos em geral obras interessantes, realistas e instigantes; no segundo, são porcarias praticamente ilegíveis, estúpidas até mesmo para os partidários da ideologia despudorada, que não se envergonha de arruinar a tentativa literária. A técnica, portanto, evidencia menos o grau de paixão política que a postura dela derivada: o primeiro grupo humaniza e busca compreender o adversário; o segundo só pensa em destruí-lo. Nada mais é preciso dizer; qualquer um é capaz de identificá-los.
Mais impressiona do que esta necessidade…
Mais impressiona do que esta necessidade permanente de orientação, tão característica dos filósofos, que os conduz a uma investigação que só termina com a morte, é o fato de que, muitos, tão logo a empreendem, satisfazem-se com as respostas que encontram e, tranquilamente, deixam de investigar. Quer dizer: o conhecimento que, como sabido, quanto mais cresce, mais escancara o desconhecido, e portanto mais levanta perguntas, mais instiga o estudo, mais amplia o campo de investigação, nalgumas mentes não gera efeito semelhante. É muito difícil não recorrer a uma predisposição para justificá-lo, e validar a observação de Ortega y Gasset de que um filósofo é, simplesmente, aquele que não pode ser outra coisa.