Se algo se atingiu pelo enfraquecimento…

Se algo se atingiu pelo enfraquecimento da religião no ocidente, foi o enfraquecimento dos vínculos sociais no nível mais básico. O próximo bíblico tornou-se, mais do que nunca, um estranho, e o sentimento que permeava ou deveria permear uma comunidade, seja ele qual fosse, transformou-se numa generalizada e absoluta desconfiança. Rompeu-se um elo comum sem substituí-lo, e o resultado só poderia ser a segregação. Disso, não se pode concluir senão que o mundo tornou-se um lugar ainda mais hostil.

O que há de mais difícil e perigoso…

O que há de mais difícil e perigoso para nós, modernos, no estudo da história, é vencer a tendência de ver-nos a malícia refletida nas ações daqueles que viviam num tempo ainda não corrompido pelo marketing. Somos inclinados a encontrar, sempre, a mentira e o interesse por trás de cada ato e de cada palavra, quando, em verdade, para nem entrar na questão moral, estas não premiavam com a generosidade e segurança que ora premiam. À mente moderna é estranha a pureza de intenções e o agir sem nada esperar em troca; por isso, para bem compreender algumas vidas pregressas, é preciso, antes de tudo, submeter-se a uma evolução.

A virtude é simples e o vício complexo

Certamente já notaram que a virtude é simples e o vício complexo. A virtude não dissimula, e apresenta-se quase sempre banal, chocha, sem graça, o que frequentemente engana sobre sua natureza. Já o vício, é difícil que o enxerguemos, de pronto, como vício: comparando-o com a virtude, nele temos uma apresentação mais charmosa, mais instigante. A virtude é simples porque, para justificá-la, jamais se necessita mais que uma meia dúzia de palavras ou do imediato senso comum; já o vício vale-se de possibilidades mais sofisticadas do argumento, e sua dialética convence justamente pela sofisticação. A reflexão sobre tais qualidades parece sugerir o dualismo entre forma e conteúdo — e as conclusões que tiramos evidenciam, a contragosto, aquela que valorizamos mais.

É proveitoso ao moralista capacitar-se…

Em certa medida, é proveitoso ao moralista capacitar-se a identificar a falsidade de longe, de forma que uma inflexão ou um olhar sejam suficientes reveladores de um caráter. Pragmaticamente, esta capacidade lhe será útil por toda a vida. Há, porém, um efeito colateral inevitável: percebendo-lhe a quase onipresença, tem de ou tolerá-la, ou afastar-se. Se aprendeu a detestá-la, se dela tomou uma repulsão invencível, descairá naquela rara prática hoje taxada de transtorno de personalidade, e ainda que, pelo motivo que seja, acabe cedendo à tortura que se lhe converterá o contato com o mundo, é somente naquela que encontrará a sua paz.