Resistir à vida prática

Vejamos um trecho do excelente livro de Andrei Tarkovski, Esculpir o tempo:

Na verdade, sou fascinado pela capacidade que tem um ser humano de resistir a forças que impelem os seus semelhantes para a competição, para a rotina da vida prática: e esse fenômeno contém o material de muitas e muitas outras idéias para meus futuros trabalhos. E nisto que se baseia também o meu interesse por Hamlet, sobre o qual pretendo realizar um filme em futuro próximo. Esta peça das mais sublimes coloca o eterno problema do homem que é moralmente superior a seus pares, mas cujas ações necessariamente afetam e são afetadas pelo desprezível mundo real. É como se um homem pertencente ao futuro fosse obrigado a viver no passado. E a tragédia de Hamlet, tal como a entendo, está não em sua morte, mas no fato de ter sido obrigado, antes de morrer, a renunciar à sua busca da perfeição e transformar-se em um assassino comum. Depois disso, a morte só pode ser uma saída bem-vinda, pois de outro modo ele teria que se suicidar…

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Chineses e a vaidade

Sou, há quase uma década, vizinho de porta de uma família chinesa. Acabei, por esse motivo, tendo a oportunidade de conhecer e conversar com mais de uma dezena de chineses. E de um tempo para cá, sem nenhuma razão aparente, passei a articular: parece-me — posso muito bem estar enganado… — que o chinês, via de regra, é menos vaidoso que o ocidental. Aprofundando-me a investigação, descobri que na China não há, por exemplo, debate político. Vejam só! Sempre pensei que um mundo sem debates políticos seria menos arisco e que, sumariamente, todo debate de ideias é, antes, uma guerra de vaidades. Pois que o chinês comum não sente a menor necessidade de ver debatedores disputando inteligência, provando ao público a sensatez das próprias ideias! E o chinês comum não liga o rádio para ouvir o comentarista político a dizer: “Tenho a melhor análise!”, ou para ouvir o comentarista econômico a prever: “Tal medida falhará!”. O chinês comum, parece-me, faz cuidar da própria vida; e a China, parece-me, não caminha quase a estourar em debates, polêmicas, vendo verter o ódio a qualquer lugar que se olhe, com seus cidadãos em rixa, agressivos uns com os outros, quase a se matar por opiniões pessoais estúpidas a respeito de assuntos que, não bastasse o desconhecimento, não lhes guardam a menor possibilidade de ação efetiva. Por um momento, julgo o chinês comum superior ao maior de nossos eruditos.

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Dignos de estima!

A classe mais estimável de pessoas é a que vive mediocremente de casa ao trabalho, durante décadas, sem fazer muitos planos, deixando a vida correr. Fazem filhos, casam-se, separando-se ou não. Então se aposentam e terminam seus dias com a cara enfiada numa televisão. Imagino esse padrão e digo: dignos de estima! merecedores dos mais ardentes louvores! E todas as outras pessoas aparentam-me, em diferentes matizes, diminuídas e escravizadas do próprio desejo.

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Falta de maturidade e discernimento

Em nossos dias há um narcisismo e uma preocupação excessiva com o sucesso que são um claro sinal de falta de maturidade e discernimento. Ninguém mais se aceita medíocre. Ou vê-se acima do que é, ou vê-se melhor em um futuro próximo. É claro que isso só pode desembocar em depressão. Fico a pensar quão mais leve calha a vida a quem diz ao espelho: “És medíocre! Tua existência não faz a menor diferença ao mundo! Em cem anos, ninguém lembrará de ti!”.

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