Talvez não haja esforço que possibilite…

Talvez não haja esforço que possibilite a nós, modernos, uma real compreensão do homem medieval. Todo ele é-nos intrincado, mas parece o seu traço mais incompreensível ser aquele que Huizinga assim descreve:

No espírito medieval, todos os sentimentos mais puros e elevados foram absorvidos pela religião, enquanto os impulsos sensuais e naturais, deliberadamente rejeitados, tiveram de se rebaixar ao nível de uma mundanidade pecaminosa. Na consciência medieval coexistem, por assim dizer, duas concepções de vida: a concepção devota, ascética, que se apropria de todos os sentimentos morais, e a concepção mundana, toda ela deixada ao diabo, que se vinga terrivelmente. Se uma das duas predomina por completo, então surge o santo ou o pecador irrefreado; mas em geral elas se mantêm num equilíbrio instável, com oscilações da balança. Veem-se pessoas apaixonadas, cujos pecados em flor por vezes fazem sua devoção transbordar e explodir ainda mais violentamente.

É uma tensão muito mais forte, que embora extreme o vício, torna mais autêntica a virtude que se lhe contrapõe. É um comportamento tão apaixonado, e sobretudo tão sincero, que nos obriga a admitir que o homem moderno, comparado ao medieval, quiçá se destaque pela “moderação”, mas com certeza por um assombroso cinismo.

É sempre um grande desafio equilibrar…

É sempre um grande desafio equilibrar as tensões conflitantes quando uma tendência predominante se manifesta no espírito, quer compelindo à exteriorização, quer à interiorização. A personalidade frequentemente escancara esta dificuldade, cujo problema maior não é seguir ou afastar-se da tendência inata, mas lidar com a oposta, a qual frequentemente se apresenta como dever. Dever, então, agir contra a própria natureza, fazer de contínuo o mais penoso, sob ameaça constante de condenação pela consciência! Talvez seja esta a maior utilidade das biografias: registrar os rebentos deste conflito na vida daqueles para os quais viver se contrapõe a obrar.

De todas as características do intelectual moderno…

De todas as características do intelectual moderno, tal como concebido por Paul Johnson, talvez nenhuma cause mais estranhamento — ou seria vergonha? — do que essa desmedida vaidade, que não se limita a um alto conceito que o intelectual faz de si, mas pretende uma dívida inata dos outros para consigo mesmo. Que dizer? Faltam palavras para essa pretensão, bem ilustrada pelas divertidíssimas “begging letters”. Nada anormal na aflição proveniente da ausência de meios, acaso geradora de um sentimento de injustiça, tal como experimentado por Raskólnikov. Mas este, ao menos, age; ainda que imprudentemente, busca pelo ato próprio aquilo que julga merecer. Um delírio, é verdade, mas o emprego da força denota a consciência da ineficácia do argumento, do disparate que seria a tentativa de convencer alguém de uma dívida em razão de sua superioridade. O intelectual moderno demonstra um descolamento tão grande da realidade que só pode mesmo remontar às questões mais elementares da criação…

A despeito de parecer hoje inexistente…

A despeito de parecer hoje inexistente após décadas de sistemática e veemente relativização, o senso comum permanece como a mais sólida baliza moral do homem ordinário. Não é a lei que o orienta, não é na lei que ele pensa quando age ou deixa de agir. Se não mata, se não rouba, é porque assim prescreve o senso comum, havendo ou não havendo lei. O efeito desta, aliás, graças ao Estado moderno, é torná-lo sempre mais ou menos infrator. Quer dizer: se não corresponde a lei ao senso comum, não é possível enxergá-la como justa, e seu efeito não pode jamais ser educativo, como teoricamente se pretende. E disso tudo, o mais curioso é que chegará o dia em que alguém terá de notá-lo, terá de notar a falência do direito moderno perante o antiquíssimo senso comum. E, então, caso se queira transcrevê-lo juridicamente, já não será possível — a menos que se admita novamente a religião.