A relação de alguns escritores com a doença é algo difícil de explicar. Uma pessoa normal, sem o menor desconforto, encontra as desculpas que precisa para não escrever. Se padece de alguma enfermidade, não há nem o que dizer. Então vemos não um, nem dois, mas muitos escritores que não apenas persistiram na doença por meses, anos, por uma vida inteira, mas fizeram da própria doença fonte de motivação. Não é pouca coisa, e não é algo fácil de imaginar. Há doenças com as quais nunca se acostuma; mas parece que, justamente estas, encurralam e não deixam outra opção.
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Algum escritor, certa vez, deu a sensata recomendação…
Algum escritor, certa vez, deu a sensata recomendação: uma obra de cada vez. E, sem dúvida, concentrar o espírito em uma única produção só pode acelerá-la, intensificá-la, sendo assaz benéfico para a criação. Mas é possível ser fiel a esta regra? Fazendo prosa, talvez. Já com a poesia, a situação muda, e quando os versos planejados ultrapassam algumas centenas, a mente parece rogar por uma válvula de escape na qual possa despejar linhas e linhas e experimentar o alívio da fluidez. Sem esta válvula, em pouco a improdutividade, somada às ideias que se acumulam num depósito fechado, começam a torturar. Ao poeta, praticar a prosa parece psicologicamente essencial.
É característico de diversos autores…
É característico de diversos autores o expressar-se comedidamente, mais sugerindo que propriamente expressando o que querem. Nalguns casos, decerto a sugestão funciona, e talvez diga mais do que a expressão direta poderia dizer. Mas esta técnica, se empregada sempre, redunda num vício que prejudica ainda mais o autor do que a obra. É um vício que, sempre que o verbo nasce inflamado na mente, rejeita sua expressão inflamada no papel. E então é como se, ao autor, fossem proibidos determinados modos de dizer. Não se trata apenas de uma limitação óbvia, mas da privação de experiências artísticas importantíssimas: uma única vez que o escritor rompa todas as amarras e force o espírito a expressar com intensidade máxima aquilo que pretende, perceberá que ali, no ato de criação, algo diferente aconteceu; mas, sobretudo, perceberá que, concentrando-se inteira e sinceramente nisto, algo diferente sempre acontece.
O choque que sofri após a primeira leitura…
O choque que sofri após a primeira leitura de Crime e castigo, provavelmente o mais determinante de minha vida inteira, deveu-se, em grande medida, à constatação de que o que Dostoiévski fez em Crime e castigo ser diferente de tudo quanto eu já havia testemunhado, dentro e fora das letras, e à constatação da imensa nobreza deste intento. Fazer algo assim, concluí, justifica e dignifica uma existência. E é tão diferente o que faz Dostoiévski e alguns outros autores que, hoje, já há mais de uma década distante daquela primeira impressão, percebo que o tempo não fez senão reforçá-la. Um livro como Crime e castigo não sairá jamais da pena de alguém que deseja contar simplesmente uma história. Por isso, é com absoluta naturalidade que leio as linhas de Joseph Frank revelando que, após uma combinação dramática de circunstâncias, Dostoiévski escreve ao irmão dizendo que, a partir daquele momento, o objetivo de sua vida seria estudar o sentido da vida e do homem. Sem essa resolução consciente, ele jamais conseguiria se aproximar do que fez.