Uma peça e sessenta contos à força

Saíram-me uma peça e sessenta contos à força. Quanto à peça, espero ser-me a única, e não tenciono retornar a esse formato. Já quanto aos contos… é impressionante: está muito claro que o formato aborrece-me, contudo estou ciente que o trabalho não acabou; sinto-me em dívida, psicologicamente obrigado a terminar o que comecei, e é certo que não chegou o momento de brindar-me com o ponto final. Uma peça e sessenta contos à força: impelido pela consciência de que há temas sobre os quais não posso deixar de escrever.

O português e suas infinitas anomalias gramaticais

O português parece-me, entre todas as línguas que conheço, a mais rica em anomalias gramaticais. Talvez por isso esteja entre as mais difíceis de se escrever bem. No português, há territórios imperscrutáveis a estrangeiros, territórios em que mesmo os nativos acham-se em desorientação. Que dizer, por exemplo, de nossos verbos abundantes, isto é, os de particípio duplo? Provam eles que o que se diz na rua sempre acaba pautando a gramática — ainda que a lógica esperneie. E que mais? Provam eles que a gramática portuguesa é frequentemente ingrata, porque o que se diz na rua hoje só irá para a gramática de amanhã. Os exemplos são infinitos. Em Portugal, por exemplo, já está mais do que consagrado o uso das variantes reflexivas do pronome se (si, consigo) referindo-se ao interlocutor de uma conversa. No Brasil, há um verdadeiro samba entre pronomes e verbos na função de 2ª pessoa do singular: a depender da região, diz-se “tu” a quem se diz “vai” no presente; utiliza-se o oblíquo “te” referindo-se àquele que se chama de “você”; conjuga-se, também, o imperativo na 2ª pessoa quando os outros modos verbais são conjugados na 3ª; entre inúmeras outras anomalias dignas de nota. Pois bem! Como estabelecer uma linha entre o certo e o errado? como se orientar? Sabemos que o uso, em última instância, dita a correção. Mas o artista que medir-se unicamente pelas ruas fará arte de segunda categoria. Se aferra-se à rigidez da gramática parecerá engessado, esquisito e artificial; se abraça o falar do povo soará inculto como ele e construirá linhas estética e eufonicamente horrorosas. Mas aí está o segredo: para o artista não há certo ou errado; há ferramentas, meios de expressão. O grande artista absorve tudo e tudo subjuga à sua arte. Vale-se da gramática quando lhe é conveniente, fazendo de idêntica forma com a linguagem coloquial — ele paira acima de ambas, e sua arte dá abrigo à linguagem em suas mais diversas manifestações.

A melhor narrativa exige estruturação metódica

Experimentações diversas têm-me induzido a pensar que a melhor narrativa exige estruturação metódica. É verdade: faz-se prosa de mente livre, deixando-a fluir, com resultados interessantes. Contudo o efeito de uma narrativa é quase sempre mais fraco se lhe notamos grandes lapsos estruturais. Por que é tíbia? por que não convence? Frequentemente encontramos a resposta em seu encadeamento, na maneira como está organizada e progride. Da parte do artista, parece interessante sentar-se e construir com liberdade total, desprendido de amarras estruturais. Entretanto, parece haver aí um engodo. A grande arte aparenta exigir um artista onisciente que, a cada passo, esforça-se por simular a naturalidade do que está a criar.

Os homens das letras

O determinismo é repugnante. Em todas as suas inumeráveis manifestações, sempre se apresenta em aspecto medíocre e infame. Entretanto, há coisas que causam espanto. Por exemplo, os homens das letras. Vislumbrar toda a conjuntura que enfrentam, e ainda assim dedicam uma vida à construção de uma obra… Privações, renúncias, angústias, humilhações… E lá estão eles, superando obstáculos, com uma determinação injustificável, diante de um horizonte isento de qualquer compensação, trabalhando dia após dia. A explicação só reside numa espécie de dever, incompreensível para a maioria e que excede o senso racional. A motivação individual pode muito bem conduzir a insanidades, desde que se abstenha do uso da razão. Difícil não dizer destes homens estimulados por algo que lhes extrapola…