A flexibilidade da língua portuguesa

Recebo a simpática instrução por e-mail: “(…) na página “Leituras” está escrito “Assim me tenho divertido” enquanto o correto seria “Assim eu…” pois “me” não faz nada (…)”. Justifico-me nesta nota.

Claro, amigo, “me” não faz nada além de receber a ação verbal: é objeto. Abaixo as transformações a que submeti a construção “Assim eu tenho divertido a mim mesmo”:

1- Assim eu tenho divertido a mim mesmo.

2- Assim tenho divertido a mim mesmo.

3- Assim tenho divertido-me.

4- Assim tenho-me divertido.

5- Assim me tenho divertido.

Uma das características mais belas da língua portuguesa é justamente essa flexibilidade quanto à colocação. O pronome oblíquo átono pode ocupar diversas posições dentro de uma mesma frase. Neste caso, saliento: 1) a concisão em se reduzindo “a mim mesmo” pelo oblíquo “me”; 2) a absoluta repugnância aos ouvidos na posposição do oblíquo ao particípio, evidenciado no exemplo 3 (“divertido-me” não existe em português); e 3) a força atrativa do advérbio “assim”, que me permite puxar o oblíquo para trás do verbo auxiliar.

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Escrever para o cinema

Creio ter sido Faulkner que disse uma vez o quanto escrever para o cinema prejudica a criatividade de um autor. É claro, Faulkner é mais autoridade para falar sobre o assunto, mas não creio que o cinema apenas mine a criatividade de um escritor. Escrever para o cinema, em meu caso, foi de profunda importância. Para os que nunca leram um roteiro — e que não perdem muita coisa: — o texto cinematográfico, quando bem escrito, é de extrema objetividade: a cena descreve exata e somente o necessário para ser inteligível. Quase não há adjetivos, uma personagem jamais se apresenta com “olhar vagueando por devaneios cálidos”, e as janelas em hipótese alguma são “tristes e sombrias, varadas por uma fraca luz que desfalece meio à penumbra”. É verdade, é verdade: há menos arte num roteiro de cinema do que em Tolstói. Porém, escrever para o cinema obriga o escritor a perguntar-se: qual o objetivo desta cena? Qual a função deste objeto, personagem ou inflexão? É mesmo necessário este trecho? Qual, antes de tudo, o objetivo, a mensagem deste filme? A cena que estou escrevendo contribui, de alguma maneira, para o enredo do filme? possui alguma ligação direta com a mensagem principal? O filme pode ser resumido, sumariamente, nos três atos da tragédia grega? O clímax convence? está bem amparado? Há justificativa dramática e psicológica para as ações das personagens? Poderia continuar citando, mas basta. O que penso, pois, é que esse tipo de pergunta parece-me fundamental para qualquer texto artístico e, humildemente, creio ser necessário fazê-las de forma metódica. Faulkner talvez não diria o mesmo mas, particularmente, dou graças ao cinema por tê-las entranhadas em minhas veias.

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