O desejo de luz

Palavras de Simone Weil, em minha tradução:

Se procurarmos com verdadeira atenção a solução de um problema de geometria, e se, ao cabo de uma hora, não estivermos mais avançados do que no início, ainda assim teremos avançado durante cada minuto desta hora em uma outra dimensão mais misteriosa. Sem que possamos sentir, sem que possamos perceber, esse esforço aparentemente estéril e infrutífero colocará mais luz em nossa alma. (…) Se realmente houver desejo, se o objeto de desejo for realmente a luz, o desejo de luz produzirá luz.

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Luiz Felipe Pondé e o problema genômico

No ensaio Da ciência e do medo, disposto em seu Do pensamento no deserto, Luiz Felipe Pondé faz uma reflexão interessantíssima a respeito do que podemos chamar de “problema genômico”.

Diz ele que certa vez, “andando pelo jardim do campus de uma das maiores e mais ricas universidades do chamado “primeiro mundo””, conversou sobre genômica e os riscos da engenharia genética com um grupo de técnicos em genética e biologia molecular. Deu-se o seguinte:

Uma das técnicas afirmou que não entendia a parafernália que a filosofia e a ética inventavam sobre a ciência em geral, mais especificamente criticava ela o blablablá sobre os possíveis desdobramentos sociais da atividade concreta e diária do laboratório genômico.

Então Pondé prossegue no ensaio, como respondesse à estimada proletária da ciência, esmiuçando todos os impactos que uma indústria genômica robusta traria em termos éticos, sociais e morais. É um cenário assustador.

Estamos falando de engenharia genética, inseminação artificial, gestação mediante úteros artificiais, — quem sabe? — incubadoras e tudo o que não se pode imaginar da evolução desta marcha aplicado em larga escala.

Pondé mostra-nos como o processo é inevitável e atacará o ser humano em sua dimensão mais íntima, destruindo interiormente importantes fulcros formadores de sentido, tudo impulsionado por um irrefreável desejo de emancipação. Com a moral sepultada pelos ganhos da técnica, restará finalmente o vácuo, exposto e inconsolável.

Mas que fazer? Como evitar o desastre? Não há que fazer. A ciência servirá de amparo ao processo, calcando-se em suas numerosas maravilhas.

Eis como Pondé engenhosamente presume o avanço da indústria genômica:

A tendência, como no caso de nossa agente social genômica, será a mediação burocrática operada pelas instituições competentes. No plano psicopragmático e sociopragmático, o que estará em jogo é a continuidade do processo emancipador — e aqui deveríamos levar em conta de modo mais sério a pragmática publicitária: “dê a seu filho o que há de melhor em você!”, ou “você não está se preocupando com o futuro de sua família?” “Previdência é a palavra-chave”. Uma tendência à reorganização social em base bionômica é irreversível. (…) Uma ampla frente de normalização será posta em prática: normalização securitária (inclusão dos bens genômicos nas apólices de seguro de saúde), normalização jurídica (definição de direitos genômicos), normalização pedagógica (definição da meta pedagógica como produção de indivíduos horizontalmente psico-bio-sociofelizes), normalização psicológica (definição da personalidade integrada como o direito a biofelicidade sem culpa), normalização social (combate a privatização dos bens genômicos), normalização política (campanha contra os preconceitos biofundamentalistas — o dogmatismo naturalista de raiz platônica a serviço do medo e da culpa — e contra o genismo, entendido como discriminação com base no menor capital genômico dos indivíduos excluídos da prática preventiva).

Sobra-nos, como sempre, a resignação e o sorriso cínico a estampar na face…

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O brilhante João Pereira Coutinho

Há quase uma década, a coluna da Folha de S. Paulo desse português é a atração de minhas terças. Junto de Luiz Felipe Pondé, João Pereira Coutinho constitui o meu contato exclusivo com jornais há anos. Aliás, são estes, acrescidos de Nassim Nicholas Taleb, os contemporâneos que exerceram influência mais forte e determinante em minha formação.

Mas que dizer de João Pereira Coutinho? Comecemos pela escrita: não há na Folha de S. Paulo coluna que verta mais lustroso o estilo, que trate melhor a língua portuguesa que a deste exímio português.

Em segundo lugar: a erudição. Se Coutinho, doutor em ciência política, escrevesse sobre política, eu jamais lhe acompanharia fielmente as linhas. A política, quando muito, não lhe serve senão de pretexto: os textos de Coutinho, todos eles, cavam mais fundo; suas colunas são atemporais. Cinema, literatura, filosofia, história, comportamento, estética… sobre todos esses e vários outros assuntos Coutinho escreve com o arsenal de um especialista. E não há, em Coutinho, ponto final sem eco.

Mais: o bom humor. As colunas de João Pereira Coutinho para a Folha de S. Paulo são melhor definidas, em verdade, como crônicas. E o bom humor é a qualidade soberana de um cronista. O bom humor torna o texto leve, apetitoso, trazendo-lhe uma nova dimensão e fazendo com que o cronista eleve-se muito acima da transitoriedade do assunto. Assim, os títulos dos textos de Coutinho jamais me desanimam: sei que, se lá está um Trump ou um Bolsonaro, em poucas linhas estarei imaginando-os a dançar.

Assim, pela quantidade de referências, pela abundância de reflexões, pelas aulas particulares de estilo e pelo profundo impacto que a leitura das colunas de Coutinho ao longo de quase uma década causaram, já não digo em meu pensamento, mas em minha personalidade, posso dizer que tenho em João Pereira Coutinho um mestre, um pai intelectual.

E que fique aqui registrado o meu reconhecimento.

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Sobre a peste

Como habitual, a contingência expondo a fragilidade do homem, desnudando-o por completo. Seus reflexos naturais: o medo e o desespero. Assim, nenhuma novidade: cadáveres sempre assustaram. Entretanto, talvez a nova peste tenha exposto um fresco fenômeno de massa: a dependência do trabalho. Digo isso por ver os que, enclausurados à força, gritam ao ver-se-lhes a vida esvaziada de sentido, quer dizer: se não há o trabalho, que resta ao homem?

Versamos aqui sobre uma classe que, ao menos, tem na vida algum propósito… Mas aí está o que a peste ilumina, a despeito das evidentes fragilidades econômicas e sociais modernas: a vida orientada à profissão envolve um risco óbvio, agravado paulatinamente pelo tempo, de converter em doença fatal o vazio das mãos que se lhe veem escorrer pelos dedos o trabalho. Mãos que, aposentadas, poderão encontrar numa corda o seu único alívio.

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