Divertidíssimo exercício mental

Vou pelos capítulos iniciais da Fenomenologia do espírito imaginando como Hegel deve ter-se divertido enquanto erigia seu monumento lógico. Realmente, deve ser um divertidíssimo exercício mental concatenar todos esses raciocínios. De minha parte, porém, se algum dia me propuser a construir prosa dessa maneira com o intuito de publicá-la sob o meu nome, comprometo-me desde já a não fazê-lo sem antes queimar tudo quanto já publiquei.

A convivência é uma senhora perversa

A convivência é uma senhora perversa que à força corrompe a moral e doutrina ao vício. Aquele que convive compra esta senhora usando a própria liberdade como moeda. Torna-se alguém pior, decerto. Nisto, a psicologia moderna é infalível: há um acordo convivial velado que implica ações as quais, se não cumpridas, são geradoras de desconforto individual e coletivo. A evolução moral exige um rompimento deste acordo, porque consiste numa reação ao instinto mundano. A virtude, embora praticada no mundo, só pode ser concebida na solidão.

Uma concepção superior da existência

Parece necessário ao homem que efetivamente sobrepuja as fraquezas da carne o amparar-se numa concepção superior da existência, isto é, acreditar — e é esta a palavra — em algo que transcenda a realidade concreta. Agindo assim, a simples razão aponta-lhe uma escala de valores que lhe deve servir de guia, e orientando-se nela é possível agir de praxe na contramão dos instintos — dando-lhes a importância devida.

A flor de pétalas negras

Exercitemos a imaginação: um homem, após muito meditar sobre o suicídio, após ponderar cautelosamente todo o tormento de que padece, conclui-o absolutamente injustificável. Busca um amigo, luzindo-lhe tibiamente a esperança de que há algo que não esteja enxergando, de que suas conclusões incorrem em erro desconhecido. O amigo dispõe-se, e começa a lhe falar sobre o cantar dos passarinhos. É possível, para o infeliz, não julgá-lo um insulto? Suponhamos, agora, um monge retornando a pé de longo retiro de silêncio. Uma senhora aborda-o na rua e diz estar receosa de que chova e molhe suas roupas estendidas no varal. Há, novamente, um contrate tão acentuado que parece oferecer o riso como única resposta. Pois bem: deste banalíssimo contraste, nasce uma flor de pétalas negras chamada misantropia.