Se entendemos o alcance da verdade como a revelação de um mistério, teremos de concluir que pelo raciocínio não se chega à verdade de nenhuma espécie. Mistério diz-se do que escapa à compreensão humana, portanto não se raciocina diante do Mistério. Diante dele reza-se, roga-se por auxílio superior, porquanto a admissão de sua existência é a confissão do fracasso racional na tentativa de apreendê-lo.
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Convicções profundas, só as têm as criaturas superficiais
Hoje, vamos destes excertos de Fernando Pessoa:
Se há fato estranho e inexplicável é que uma criatura de inteligência e sensibilidade se mantenha sempre sentada sobre a mesma opinião, sempre coerente consigo própria. A contínua transformação de tudo dá-se também no nosso corpo, e dá-se no nosso cérebro consequentemente. (…) Ser coerente é uma doença, um atavismo, talvez; data de antepassados animais em cujo estádio de evolução tal desgraça seria natural.
A coerência, a convicção, a certeza, são além disso demonstrações evidentes — quantas vezes escusadas — de falta de educação. (…)
Convicções profundas, só as têm as criaturas superficiais.
A misantropia é um dos traços mais salutares ao raciocínio que se tem notícia
A misantropia é um dos traços mais salutares ao raciocínio que se tem notícia. Ser misantropo envolve um esforço contínuo e desafiador. Quando se é misantropo, o sujeito torna-se um estrategista por necessidade. Aprende psicologia para entender a mente dos outros, para então lhes prever o comportamento e ser capaz de evitá-los. Tem de ser especialista em estímulos emocionais para saber não suscitar nunca nenhum em ninguém. O misantropo sabe que sua sagacidade será inversamente proporcional ao desconforto proveniente das relações sociais; portanto, quanto mais sagaz, mais plenamente alcançará o objetivo de reclusão. O interessante é que o estímulo nunca cessa, o cérebro do misantropo é instigado o tempo inteiro e jamais descansa, posto sempre haver a possibilidade de alguém interromper-lhe a solidão e solicitá-lo para qualquer coisa. É como um jogo interminável, extremamente salutar à inteligência e que, mais do que qualquer outro jogo, atiça a vontade de ganhar.
Utopia é tornar-se um completo desconhecido
Utopia é tornar-se um completo desconhecido. Acordar numa metrópole e sair à rua sem que um bom-dia interrompa o fluxo matinal do pensamento. Pela tarde, a liberdade para que a mente continue o seu próprio caminho em silêncio e, pela noite, a paz para pensar. Nenhuma ligação, nenhuma troca de palavras, nada. Impossível, é claro. Do contrário, não haveria de idealizar paraíso nenhum.