O ambiente cultural da Rússia em meados do século XIX chega a parecer fantástico. Não apenas pela pujança, pela efervescência dos debates, pelas consequências práticas que as ideias em circulação adquiriam, pela censura atuante, pelas controvérsias, pelos eventos políticos… mas espanta, primeiro, o quilate dos autores que publicavam na imprensa, — uma imprensa que ainda abrigava muita, muita literatura, e ostentava uma plêiade que a Rússia jamais produzira e jamais produzirá; — depois, a relevância do que se discutia, a importância histórica das discussões. O entusiasmo com que tudo isso se dera provou-se inteiramente justificado, e faltam palavras para descrever o contraste com o que se passa na imprensa atual. É didático, porém, notar os resultados explosivos que se seguiram de tal vigor.
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O historiador da filosofia pode muito bem…
O historiador da filosofia pode muito bem traçar o curso das correntes de pensamento ao longo das décadas, identificando tendências aqui e ali, e tê-las como formadoras de resultados que ele mesmo identifica. Fazendo isso, tem-se uma visão talvez não da evolução do pensamento, mas da origem das ideias, de que tipo de estímulo as incentiva e a que tipo de estímulo elas respondem. Isso é algo certamente proveitoso; contudo, o panorama histórico é insuficiente para que o intelectual se possa dizer senhor de tais desenvolvimentos. Para tanto, é preciso que, interiormente, ele viva o processo, assuma como suas as ideias expostas e deixe que, dentro de si, elas tomem o caminho que quiserem. Talvez não se possa fazê-lo para todos os problemas filosóficos; mas, especialmente para os mais atuais, esse exercício costuma conduzir a conclusões bem diferentes daquelas que brotam com ares de imediata consagração.
Um autêntico filósofo
A impressão que ficamos após percorrer estas quase seiscentas páginas da biografia de Schopenhauer assinada por David Cartwright é só uma: Schopenhauer é um autêntico filósofo. Isso se nota porque, para um conhecedor da obra de Schopenhauer, sua biografia não guarda surpresas, algo que equivale a dizer que sua vida foi condizente com sua filosofia ou, ainda, que sua filosofia era real. Para dimensionar a dificuldade, e quiçá a grandeza deste feito, basta compará-lo às misérias abundantes descritas por Paul Johnson na vida de seus intelectuais. Em Schopenhauer, vemos uma índole gravada em cada ato, em cada reação; vemos um homem que, a despeito de quanto se lhe pode dizer a respeito, não se traiu e nem se falsificou. Tal integridade, raríssima, é merecedora do maior reconhecimento.
Somente o caráter
Já disseram com acerto que, de uma biografia, resta somente o caráter do biografado. E percebemo-lo especialmente nos exemplos que pareceriam contradizer a regra: na biografia de homens que legaram uma obra intelectual. Destes, os quais marcaram por algo que não ações práticas, após lhes analisarmos a vida retemos a imagem do que foram no mundo prático, das decisões que tomaram, do temperamento e do cotidiano. Lembramo-nos de como viveram. Lembramo-nos do libertino, do consequente, do sorumbático e do canalha. Tudo isso ensina muito, e firma um laço indissociável entre o imaginativo e o real.