O historiador da filosofia pode muito bem…

O historiador da filosofia pode muito bem traçar o curso das correntes de pensamento ao longo das décadas, identificando tendências aqui e ali, e tê-las como formadoras de resultados que ele mesmo identifica. Fazendo isso, tem-se uma visão talvez não da evolução do pensamento, mas da origem das ideias, de que tipo de estímulo as incentiva e a que tipo de estímulo elas respondem. Isso é algo certamente proveitoso; contudo, o panorama histórico é insuficiente para que o intelectual se possa dizer senhor de tais desenvolvimentos. Para tanto, é preciso que, interiormente, ele viva o processo, assuma como suas as ideias expostas e deixe que, dentro de si, elas tomem o caminho que quiserem. Talvez não se possa fazê-lo para todos os problemas filosóficos; mas, especialmente para os mais atuais, esse exercício costuma conduzir a conclusões bem diferentes daquelas que brotam com ares de imediata consagração.

Um autêntico filósofo

A impressão que ficamos após percorrer estas quase seiscentas páginas da biografia de Schopenhauer assinada por David Cartwright é só uma: Schopenhauer é um autêntico filósofo. Isso se nota porque, para um conhecedor da obra de Schopenhauer, sua biografia não guarda surpresas, algo que equivale a dizer que sua vida foi condizente com sua filosofia ou, ainda, que sua filosofia era real. Para dimensionar a dificuldade, e quiçá a grandeza deste feito, basta compará-lo às misérias abundantes descritas por Paul Johnson na vida de seus intelectuais. Em Schopenhauer, vemos uma índole gravada em cada ato, em cada reação; vemos um homem que, a despeito de quanto se lhe pode dizer a respeito, não se traiu e nem se falsificou. Tal integridade, raríssima, é merecedora do maior reconhecimento.

Somente o caráter

Já disseram com acerto que, de uma biografia, resta somente o caráter do biografado. E percebemo-lo especialmente nos exemplos que pareceriam contradizer a regra: na biografia de homens que legaram uma obra intelectual. Destes, os quais marcaram por algo que não ações práticas, após lhes analisarmos a vida retemos a imagem do que foram no mundo prático, das decisões que tomaram, do temperamento e do cotidiano. Lembramo-nos de como viveram. Lembramo-nos do libertino, do consequente, do sorumbático e do canalha. Tudo isso ensina muito, e firma um laço indissociável entre o imaginativo e o real.

A historiografia proporciona repetidas vezes…

A historiografia proporciona repetidas vezes um choque tão grande, que é impossível ao estudante não entrar num estado de revolta. Isso se dá, por exemplo, quando se estuda o avanço sistemático do Estado sobre as liberdades, penetrando e pervertendo cada vez mais completamente o tecido social, de modo que, hoje, transformado num monstro poderosíssimo, praticamente anulou a possibilidade de reação. A revolta é legítima: por muitíssimo menos sublevaram-se povos e rolaram cabeças. Pensar nos “abusivos” impostos do passado e cotejá-los com a aceitação pacata, bovina de impostos atuais radicalmente superiores é uma punhalada no espírito. Contudo, é preciso vencer a revolta e prosseguir no estudo, já que, antes de tudo, é preciso entender exatamente o que aconteceu.