Tradições e crise

Já foi notado, e com sabedoria, que em épocas de crise não resta a um povo senão apegar-se ao passado. No desespero da incerteza escancarada pela crise, emerge a tradição como um porto seguro, e assim aquela é vencida tanto mais facilmente quanto mais sólido for o passado de um povo, quanto mais estiver ele entranhado e presente no estágio atual. Disto é evidente que há nações mais e menos vulneráveis; impressiona, porém, quando notamos que as ditas menos vulneráveis, ainda que por um curto período, convertam-se na negação daquilo que sempre foram, parecendo romper com o elo histórico que as define. Automaticamente pensamos: e então, que será? Mas é curioso notar que, o mais das vezes, por conjunturas que talvez escapem ao raciocínio, surgem as tradições — sempre elas — revigoradas, e acabam como salvadoras de um futuro que parecia resumir-se no caos.

Os agitadores políticos de épocas passadas

É um fato notável que, para que saibamos quem foram os agitadores políticos de épocas passadas, tenhamos de recorrer a obras que não as de história. São raríssimas as exceções a essa regra, e o mais das vezes aplicam-se aos piores exemplos da classe. Triste destino! E ver que a história não concede uma linha, uma mísera menção ao grosso destes que em vida inspiram admirações tão exaltadas, influindo diretamente na dita opinião pública e passando uma falsa impressão de importância — que a história trata de desmentir. Disto se tira uma única conclusão…

Uma silabada em latim

Se procede o asseverado por Gilberto Freyre que, há pouco mais de um século, neste mesmíssimo Brasil, uma silabada em latim ou um erro de pronúncia em francês “podia ser a desgraça de um homem com pretensões a culto”, será difícil encontrar na história da humanidade uma tragédia intelectual de mesmo calibre da que se passou em solo verde-amarelo. Em parte, poder-se-ia justificá-lo pela atual “inutilidade” de se ter uma pronúncia francesa correta, “inutilidade” ainda maior para o latim, estudado exclusivamente para ler. Contudo, para não discorrer sobre o “inútil”, salta aos olhos o sepultamento absoluto desta que fora uma tradição aos doutos, ora instruídos de forma inteiramente distinta. Hoje, impressiona a mera constatação que tal tradição existiu, que houve o tempo em que brasileiros aprendiam latim estimulados pela palmatória e formavam-se fluentes em francês. É ver qual será a compensação desta notável falência, já comentada nestas notas…

Há algo de verdadeiramente genial em Gilberto Freyre

Há algo de verdadeiramente genial na maneira como Gilberto Freyre constrói suas obras. A princípio, impressiona o caráter inclassificável de todas elas, isto é, o caráter de mistura, de obras devotadas a muitas, e não somente a uma ciência. Pelos prefácios, já se nota um amontoado impressionante de referências contrastantes, que instiga a curiosidade de como elas se irão harmonizar nas páginas seguintes. Então começa Gilberto Freyre sua prosa, intercalando antropologia e sociologia, sínteses e relatos, passando de um inventário de costumes a eventos históricos, penetrando no recanto mais íntimo de suas personagens, e todo esse amontoado vai lentamente formando um panorama complexo e vividamente colorido, que dificilmente uma obra puramente sociológica, antropológica ou historiográfica seria capaz de igualar. É como se ele, metódico, trocasse a tonalidade da tinta após pintar vários parágrafos com uma só cor. Depois de muitas páginas, quando já é possível observar o conjunto, sentimo-nos diante de uma obra com precisão historiográfica, mas pintada com sutileza literária na construção das personagens, na minuciosidade de detalhes, na representação dos ambientes socioculturais que serviram de pano de fundo para o período histórico abordado. É claro que suas obras, construídas dessa maneira, não podem agradar os tarados pela objetividade dos fatos — mas estes, porém, conhecendo-os, por isso mesmo não serão jamais capazes de os interpretar.