Quem há que confesse que uma vez foi vil?

De Fernando Pessoa:

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles são príncipes — na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

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O conto que Kafka não escreveu

Um banalíssimo sujeito mantém, por quinze anos, o mesmo número de celular. Construiu, assim, uma rede de contatos pessoais e profissionais extensa. É, sobretudo, dependente deste número. Eis que, subitamente, passa a receber entre 100 e 150 ligações diárias em horário comercial de empresas tentando vendê-lo qualquer sorte de produto financeiro. Entre 100 e 150 ligações de 8h às 18h: fazendo a matemática de padaria, o número equivale a aproximadamente uma chamada a cada cinco minutos. O sujeito, aliás, o jovem misantropo é forçado a atendê-las todas, posto haver a possibilidade de, entre os números desconhecidos, encontrar-se um possível cliente. O número é, também, um número de trabalho. De cinco em cinco minutos, o telefone toca. O jovem atende com grosseria, dispensa a empresa invasiva irritadíssimo por ser acionado para ouvir sobre produtos que não tem o menor interesse, sem ter jamais concedido abertura para que tais ligações fossem realizadas. Então se lhe torna a rotina um inferno. Não consegue concentrar-se em nada, o telefone não para de tocar. Tem de atender, passa a ser rude na primeira palavra, destrata contatos profissionais por engano. “O senhor Luciano Duarte, por favor…”, “Por gentileza o senhor Luciano…”, “Neste número eu consigo falar com o senhor Luciano?…”. Oh, Kafka, irmão, ajuda esse teu personagem!

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E. T. A. Hoffmann no século XXI

Sorrio imaginando o juiz E. T. A. Hoffmann: juiz, nas palavras de Carpeaux, “dos mais honrados e — em tempos difíceis de reação política — dos mais independentes que houve jamais na Prússia”. Sorrio imaginando esse juiz em nosso estimável século. Quero dizer: o juiz, que também era habilíssimo narrador, seria facilmente destruído pelas hordas imbecis e invejosas que, nestes tempos, divertem-se arrasando vidas e carreiras. Engraçadíssimo seria, por exemplo, o enredo de Die Elixiere des Tenfels, romance primorosamente arquitetado, adaptado aos nossos dias: um pastor evangélico possuído pelo diabo é conduzido ao assassinato e ao incesto, logrando não só camuflar os próprios crimes, como galgar posições na pirâmide social. Pergunto: é ou não é divertido imaginar o que aconteceria com a reputação desse juiz caso tivesse-lhe o romance divulgado? Teria ele condições de, por exemplo, ser nomeado à Suprema Corte? O honrado juiz, neste século, aprenderia o que é ser democraticamente linchado.

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A representação viva de manifestações psicológicas contrárias

O grandioso, em literatura, envolve a representação viva de manifestações psicológicas contrárias. Grandes autores, naturalmente, estreitam-se e afastam-se de ideologias opostas, a depender do ponto de vista, porquanto o ser grande envolve a capacidade de apreender a realidade sob variadas perspectivas. Um grande autor jamais se lhe permitirá a obra viciada, previsível, e por isso jamais será enquadrável numa caixa ideológica sem milhares de ressalvas.

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