O meu jornal

Sonhei ter criado um jornal. A cena foi a seguinte: em redor de uma mesa, minha equipe, empolgadíssima, pôs-se a discutir a linha editorial do periódico, quando os ânimos se exaltaram. Combateríamos as injustiças do mundo: claro, claro! E a representatividade seria pauta obrigatória! De quem, onde? Eis o que os gritos tentavam expressar. Cada um berrava a própria opinião. Eu via-me calado, receoso de dizer o que pensava — mas pensava: “Oh, magnífica bobagem!”; e, óbvio, dizê-lo seria minha ruína, visto algumas opiniões serem proibidas socialmente… —Então, em plena guerra verbal, quando tudo aparentou irresolúvel, solicitaram-me a palavra de dono do jornal. Súbito, tendo de expressar em poucas palavras a minha opinião sobre qual classe era a mais injustiçada de todos os tempos, sobre quais matizes julgava mais nobres para o jornal, e cuidando não ofender a equipe que necessitava motivada, respondi: “Vamos fazer o seguinte. Todas as pautas são muito importantes” — e conduzi, todos eles, a um crematório. Solicitei uma entrevista com o operador de forno; pedi-lhe: “Explica pra gente, amigo, em que consiste o seu trabalho”. Naturalmente, meu jornal jamais publicou uma primeira edição.

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Jude, o obscuro, de Thomas Hardy

Jude, o obscuro (também traduzido como Judas, o obscuro) é o último romance de Thomas Hardy. Recebido em hostilidade pela crítica, há quem diga que os epítetos partindo do “sujo” ao “imoral” justificaram que Hardy vivesse-lhe os pouco mais de trinta anos restantes sem publicar um novo romance. O fato é que Hardy abandonou o gênero exatamente após a publicação de uma obra-prima. Quanto às críticas, Swift bem definiu: “When a true genius appears in the world, you may know him by this sign, that the dunces are all in confederacy against him”. E não é possível hoje, distanciados das mesquinhas conveniências da sociedade vitoriana, não classificar a obra como genial. Genial e indutora da revolta: Jude, o obscuro expõe as entranhas desta organização repugnante denominada sociedade. Jude, o protagonista, enfrenta ambiente limitador da liberdade, opressivo contra qualquer manifestação do individual. As massas, naturalmente, são apresentadas como desprezíveis, hostis frente ao diverso, incapazes de aceitar o que lhes não replique a mediocridade. A organização social calcada em convenções, quase sempre estúpidas, antinaturais e indutoras da injustiça; o autoritarismo figurando-lhe como essência e a mensagem claríssima: a sociedade é uma máquina imunda. Difícil não ler a obra e julgar que o conveniente é essencialmente indigno. Jude, ainda novo, almeja a alta cultura, a despeito de suas limitadíssimas possibilidades. Alimenta, por anos, um sonho, quando passam a vê-lo, no vilarejo onde reside, como um jovem promissor. Então lhe armam uma cilada. Uma garota o seduz, desejosa de ascensão: arrasta-o para sua própria casa, submetendo-o ao constrangimento auxiliada do pai. Jude é forçado a julgar que o casamento é exigência da honra e casa-se, ainda que não dispondo de condições para fazê-lo. A realidade muda bruscamente: Jude vê-lhe, pois, o horizonte crassamente limitado, com todos os seus sonhos baldados em razão de uma necessidade compulsória de dinheiro. Em pouco, o casamento mostra-lhe a face perversa: a esposa, insatisfeita, larga-o e muda de país, não o desobrigando, porém, do compromisso eterno que firmou diante do padre, forçado pelas convenções. Então a narrativa avança e Jude, apaixonando-se por sua prima, sente na carne a maldição de nascer pertencente à espécie humana. É ler e sentir pulsar a revolta. Depreciaram a construção das personagens de Hardy, julgando-as reféns de um determinismo biológico; disseram de várias cenas imorais, absurdas e muitas outras coisas. Mas aqui está a verdade: a narrativa de Hardy convence, as personagens são vivas e reais e o enredo de Jude, o obscuro é conduzido com extrema habilidade. O tempo já parece evidenciar quão virtuosas eram as convenções da sociedade vitoriana. E parece, também, evidenciar isto: Jude, o obscuro é um romance imortal.

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Por que, maligna Vida, agir não deixas…

Por que, maligna Vida, agir não deixas
A desumana Morte já no início?
Por que germinas no homem esperanças
A convertê-las todas em suplício,
A convertê-las todas sempr’em queixas?
Por que camuflas-te em vãs seguranças?
Por que te tornas palco de vinganças?
Não compadeces vendo o sofrimento?
Ignoras o tormento
Que amarga-o a matéria enquanto vive,
Antes que a Morte prive
A boca de externar o sentimento?
Acaso agrada-te o pulsar da dor?
Sorris ao permitir que a Morte crive
O peito e a mente humana de terror?
Quem vê-te a essência mira-te em pavor!

Pois quem avista o Fado, mesmo tarde,
Encontra-o co’o malhete e a folha escura
À Morte despachando o fim secreto,
E em vão pragueja, em vão a si conjura
O espírito qu’em longo pânico arde
Ao ver-se condenado a ser objeto
Do mais atroz e horrífico decreto:
“Tudo o que fiz não teve utilidade!
— O desespero invade —
Sou alvo de uma besta predatória
Que arrasa até memória,
E nada brida-lhe a feroz maldade!
A dor que sinto nada significa,
Mesmo qu’imensa a angústia é irrisória!
Oh, maldição! Oh, terra infausta! Oh, zica!
Tenho de ser em chão que nada fica!”

Tortura intensa que jamais s’esgota,
Instala-se expulsando o sedativo,
Faz reino em que só o desespero impera,
Transforma o juízo em ferimento vivo.
Como sorrir se não há nem remota
Expectação matar de a cruenta fera
E a desintegração é certa à espera?
Como mirar sem choro o fiel amigo
Prevendo-lhe o castigo?
“Em desamparo irás deixar os teus,
Quiçá sem nem adeus,
E a obra tua irá sumir contigo…
Não há nada a fazer contr’esse mal,
É este o fado dos filhos de Deus:
Acometidos serem da mortal
E ingrata foice no dia fatal…”

Como, meu Deus, conter o forte pranto
Ante a ternura da face querida
Sabendo-a, como a si, sujeita à pena
Que tranca numa cela onde a saída
Exige a extinção total! E quanto
Não dói saber que o tetro Fado ordena
A mortificação e o ser condena
A perder totalmente o movimento!
Oh, Fado lazarento!
Qu’extingue a vida em sonhos incompletos,
Tratando como insetos
O ser que morre e o que rompe em lamento…
E pior sofrer com avançada idade
E a mente cravejada dos afetos
Exterminados, e ver a verdade:
Em vida quanto é bom vira saudade…

Mas também a saudade é condenada:
Se não míngua co’o tempo, vai embora
Acompanhada da matéria triste,
Acompanhada da mente que chora!
Oh, maldição rumar consciente ao Nada
E ver que o próprio choro não resiste:
Em vida morre tudo quanto existe!
E a mente desditosa enquanto acesa,
Denega em si a tristeza,
Revolta-se e o que aflige-a elimina,
Aviando na faxina
Aquilo que na vida tem beleza!
Quer a cabeça ser feliz e forte,
Mas é-lhe a infelicidade a sina…
Sofrer! Mas não pra sempre, pois, por sorte,
A dor acaba, visto existe a Morte…

Oh, desespero! A vida suportar
É empanturrar-se do insignificante,
Empanturrar-se até grande modorra,
Fazendo com que a mente não s’espante
E o raciocínio deixe de falar!
Pois do contrário é defrontar masmorra
Sem um único amigo que socorra
O pensamento do desassossego,
Gritando em pleno ofego,
Deliberando a solução terrível,
Mas ela é impossível!
Pois a coragem curva-se ao apego
E encobre-se tolhida da esperança,
Que nunca entrega nada de acessível
E vende o paraíso sem fiança!
Mas também ela um dia a Morte alcança…

Responde, Vida! Por que não te opões
Vendo-te a converter em dor intensa?
Por que a tortura? Por que suportá-la?
Por que mortificar o ser que pensa?
Qual a razão de tantas aflições?
Como deter o monstro que apunhala?
Por que apodreces morta numa vala?
Por que não cravas-te o que é nobre e terno
Na imensidão do eterno,
Mostrando haver no efêmero animal
Qualquer coisa imortal?
Por que não salva a mente deste inferno?
Há algo em ti que a Morte não liquida?
Por que não dás um mínimo sinal?
Há algo dure após a despedida?
Um sim seria tão mais belo, Vida…

(Este poema está disponível em Versos)

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O papel dos críticos literários na formação do intelectual

Uma das decisões fundamentais e primárias na trajetória de um intelectual é decidir pelos guias que utilizará para elaborar a própria rota e auxiliá-lo a apreender o que verá pelo caminho. Privado do amparo, o longo percurso apresenta-lhe obstáculos quase insuperáveis. Por isso, antes de percorrê-lo, é necessário estudá-lo, a definir o melhor trajeto, ou o trajeto que se ajusta melhor aos próprios objetivos. O que deseja ver? Eis outra questão importante: as possibilidades são imensas… Por isso, o papel dos críticos literários é nobilíssimo. São eles quem desvendam sendas alternativas — muitas vezes extremamente desagradáveis — e entregam o resumo de suas perambulações. Onde a luz? Onde a escuridão? Sem eles, encontramo-nos em mata fechada, perdidos e desamparados. Mas como escolher os próprios guias? Nova difícil questão. O bom guia deve entregar segurança e despertar admiração. A seguir alguém, devemos ter nele mais confiança que em nós mesmos. Assim, um grande crítico deve reunir, além de um vasto conhecimento, qualidades pessoais atípicas, do contrário será menor em sua função. Como o artista, deve o crítico ser observador, detalhista, curioso; deve buscar intencionalmente o diferente, enveredar justamente pelas rotas que aparentam as mais medonhas; deve ser justo, receptivo ao contraditório, disposto a abandonar cada uma das próprias convicções; deve ser capaz de enxergar méritos onde parece não havê-los e, acima de tudo, deve ser capaz de fazer a dificílima distinção entre o melhor e o mais agradável. Só assim poderá dizer, de consciência limpa e em palavras justas, qual cuida a melhor rota a ser percorrida, ou quais rotas levam a quais paradeiros; do contrário, será um condutor desleal, um manipulador e, não raro, evidenciará no trabalho os defeitos do próprio caráter. Assim, como guiados devemos responder a pergunta: “Por quem desejamos ser influenciados?” — e a resposta, a despeito das aparências, também dirá muito sobre nós.

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