Quem há que não se espante?

Vamos desta abertura magnífica de uma das epístolas de Camões:

Quem póde ser no mundo tão quieto,
Ou quem terá tão livre o pensamento,
Quem tão exprimentado, ou tão discreto,
Tão fóra, emfim, de humano entendimento,
Que ou com público effeito, ou com secreto
Lhe não revolva e espante o sentimento,
Deixando-lhe o juizo quasi incerto,
Ver e notar do mundo o desconcêrto?

Quem ha que veja aquelle que vivia
De latrocínios, mortes e adulterios,
Que ao juizo das gentes merecia
Perpétua pena, immensos vituperios,
Se a Fortuna em contrário o leva e guia,
Mostrando, emfim, que tudo são mysterios,
Em alteza d’estados triumphante,
Que por livre que seja não s’espante?

Quem ha que veja aquelle, que tão clara
Teve a vida, qu’em tudo por perfeito
O proprio Momo ás gentes o julgára,
Inda quando lhe visse aberto o peito,
Se a má Fortuna, ao bom somente avara,
O reprime, e lhe nega seu direito,
Que lhe não fique o peito congelado,
Por mais e mais que seja exprimentado?

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O alter ego na literatura

Algumas personagens literárias tiveram a felicidade de serem classificadas pela crítica como alter ego do autor. Outras já nasceram agraciadas com o selo proveniente do próprio mestre que lhes pariu. Alter ego… epíteto mágico capaz de dotar qualquer personagem de uma profundidade imediata, incutindo-lhe os passos com o peso da vida real. Engraçado! Não consigo pensar em literatura que não contenha, em grande medida, o peso da realidade do autor. A mim é simplesmente impossível imaginar um escritor a escrever abrindo mão das próprias impressões sobre a vida, das suas experiências, dos próprios julgamentos sobre si e sobre os outros, dos detalhes da existência que só ele nota, das observações que arquiteta sobre o meio em que vive. Se está a pintar um ambiente, pois tomará como base um ambiente que já presenciou ou imagina; se está a descrever um caráter, pois irá servir-se dos exemplos que a vida lhe concedeu. Sensações: o simples fato de imaginá-las em profundidade é, também, senti-las, e não é possível julgar que o autor esteja imune aos sentimentos que ele mesmo evoca. Como saberia descrevê-los, não fosse capaz de senti-los? Assim, o alter ego, termo de múltiplos sentidos, se pode, em psicologia, expor um interessante e complexo desvio de personalidade, em literatura normalmente expõe uma personalidade obcecada consigo mesmo: o autor.

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O silêncio de Machado de Assis

Alvo de numerosas críticas sendo algumas, em verdade, ataques invejosos, Machado de Assis, em toda a sua vida, silenciou-se a respeito. Mereciam resposta? ou antes: cabe ao artista responder as críticas que lhe são direcionadas? Sem dizer uma única palavra, Machado nos ensinou como o grande artista deve portar-se. Atacado, o mestre conservou-lhe a independência, continuou a trabalhar. E se as críticas expuseram qualquer problema estético ou expressivo digno de nota, pois que a resposta está claríssima em literatura. E para a grande massa dos comentários, bom, esses receberam o que lhes cabia: o desprezo.

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Inspiração: estimulação consciente do cérebro

Li não lembro onde, há alguns bons anos, um psicólogo a dizer que Bertrand Russell utilizava um processo interessante quando se envolvia em problemas complexos. Seria mais ou menos o seguinte: Russell pensava, com máxima concentração e força de espírito, no determinado problema; traçava-lhe as possíveis soluções, desmembrava-lhe em questões menores, formulava variadas hipóteses e buscava encontrar, em todas, as possíveis falhas. Ocupava-se-lhe inteiramente a cabeça com a questão por horas, às vezes dias, e então, quando se sentia esgotado, não publicava, sequer executava a redação final de suas conclusões: abandonava o problema e deixava-o descansar, ocupando-lhe a mente com qualquer outra coisa. Então, passados alguns dias, semanas ou meses, subitamente a mente apontava-lhe a solução, que vinha como uma violenta avalanche e, assim, Russell sentava-se a escrever. Que seria isso, inspiração? Se for essa a palavra, então será forçoso adicionar que nela não há nada de divino, fantástico ou sobre-humano. O que há é método, estimulação consciente do cérebro. E se o cérebro, pois, às vezes não entrega resposta imediata, não quer dizer que não funcione, ou que não esteja a trabalhar. Da mesma forma que, quando decide ferver em momento inoportuno, não está a fazer nenhum tipo de mágica ou exibir poderes sobrenaturais…

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