Voto de silêncio

Há um personagem em meus contos que, fazendo voto de silêncio, diz o seguinte: “a paz de espírito é a surdez”. Esse personagem sou eu, em minhas insuportáveis reflexões. Não há nada capaz de irritar-me mais do que a palavra, o rumor de voz humana. Digo isso e certamente vocês pensam que faço piada. Mas, sempre que imagino um mundo perfeito, não há ruído: o silêncio é absoluto, imperturbável. E fico a pensar em quanto tempo passarei a me irritar também com a palavra escrita. Sejamos razoáveis: não tenho trinta anos, mas já tenho quase setenta. E se, em razão do avanço da idade, por uma compreensível e até natural diminuição de minha tolerância com as coisas, os signos gráficos passarem a incomodar-me? Bom, então eu realmente não sei o que mais a vida poderá guardar a mim.

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Mal secreto, de Raimundo Correia

Iniciemos o ano com o soneto Mal secreto, de Raimundo Correia:

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse, o espírito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

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N’um album, de Alexandre Herculano

Hoje, meu poema preferido do formidável Alexandre Herculano:

Quando o Senhor envia
O trovador ao mundo,
Faz devorar a essa alma
Fel amargoso e immundo;

Porque lhe diz: — “Poeta,
Vai conhecer a terra;
Prova dos seus deleites;
Prova do mal que encerra.

Desses e deste esgota
As taças muitas vezes,
Embora de uma e d’outra
Aches no fundo fézes:

E quando bem souberes
Que tudo é sonho vão;
Que é nada a dor e o goso,
Sólta o teu hymno então.”

E o pobre desterrado
Vem seu mister cumprir.
Nasce: homens e universo,
Tudo lhe vê sorrir;

E o seu balbuciar
Um canto é d’innocencia:
Mas outro foi seu fado;
Guia-o a providencia.

É cherubim precíto
Qu’ inda entrevê o céu,
Mas através da vida,
Mas através de um véu.

Em turbilhão d’affectos,
Seu íntimo viver
Rapido lhe devora
Sperança, amor e crer.

Do goso nos deli­rios
Debalde busca o amor;
Saudade melancholica
Pede debalde á dor.

Depois, desanimado,
Pára a pensar em si,
Acha no seio um ermo,
E tristemente ri.

É desde aquelle instante
De um acordar atroz,
Que ao condemnado lembra
Do que o mandou a voz.

Então entende e cumpre
Seu barbaro destino;
Então é que elle aprende
A modular um hymno.

Virgem, ao que assim passa
Por meio do existir,
Calcando os frios restos
Do crer e do sentir,

Não peças te revele
Sua alma na poesia,
E dê aos pensamentos
O encanto da harmonia;

Porque lá, nesse abysmo,
Não resta uma illusão:
Só ha perpetua noite,
E injuria e maldicção.

Não entenderas, virgem
Ainda innocente e pura,
O canto que surgira
Dessa alma gasta e escura.

Deixa-o seguir seu norte,
Cumprir missão cruel;
Deixa-o verter o escarneo;
Deixa-o verter o fel;

Deixa-o cuspir em faces
Onde não ha pudor,
E ao mundo, ebrio de si,
Rindo ensinar a dor.

As sanctas harmonias
De cantico innocente
Sabe-as o alvor do dia
Quando rompe do oriente;

Murmura-as o regato;
Vibra-as o rouxinol;
Vem no zumbir do insecto,
No prado, ao pôr do sol;

Vivem no puro affecto
Da filial piedade,
Nos sonhos e esperanças
Da juvenil idade.

Esta poesia é tua:
Eu já a ouvi e amei;
Mas hoje nem a entendo,
Nem repeti-la sei.

Assim, meu nome só
Escreverei aqui;
Som vão, intelligivel
Apenas para ti;

Extincto candelabro
Do templo do Senhor,
Que por algumas horas
Deu luz, teve calor;

Lenda de sepultura,
Que fala em gloria e vida,
E esconde ossada infecta
Dos vermes corroída;

Pinheiro solitario,
Que o raio fulminou,
E que gemeu tombando,
E não mais murmurou.

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Crítica: O poder da autorresponsabilidade, de Paulo Vieira

Mal começo estas linhas e sinto o dedo tremer, hesitante em digitar. Pergunto à minha consciência: “Escrevo?” — e ela responde-me: “Não!”. Levanto-me, deixo a mesa e vou à janela, a refletir. A consciência pesa-me, censura-me renitentemente. Estou pensando: “Se eu não quiser, não escrevo: o texto ainda está em branco”. Estaco. O que julgo acertado? Escrever. Há, para mim, algum tema proibido? Não. Ora, então devo escrever… Decido voltar. Sento-me novamente: vou escrever! Escreverei! Mas a consciência põe-se a gritar, de joelhos e desesperada: “Não faça isso! Não escreva esse texto!”. Debalde… é impossível! Sou teimoso e vou escrever.

Assim, é com imensa alegria que inauguro neste sítio um método inovador de crítica literária: criticarei um livro que não li. “Como?”, irrompe a pertinente pergunta. Mas não há segredo no processo: não lerei; então darei minha sincera opinião. Vejamos se o método é ou não digno de apreço.

Abro uma lista com os livros mais lidos no Brasil em 2019. Instintivamente, meu olho crava em Paulo Vieira, O poder da autorresponsabilidade: A ferramenta comprovada que gera alta performance e resultados em pouco tempo. A extensão do título me não permitiu registrar em tempo: fui alvo de duas agressões visuais. A primeira, ao lado do nome do autor: lê-se PhD; a segunda, pouco abaixo, onde se lê: “O homem que impactou mais de 20 milhões de pessoas”.

Crispo na cadeira. E confesso, sinceramente, meu desalento. Creio mais sensato desistir da empreitada. Criticarei um PhD sem lhe ler a obra? Tenho de ser um imbecil para atrever-me a semelhante disparate… Por que, primeiro, não trato de buscar meu PhD? Minha cara não queima? Vocês dão risadas, mas minha obsessão impele-me a abrir a prévia gratuita do livro disponível na Amazon. Tomo um susto; percebo que, ao clicar na imagem da capa, Paulo Vieira impacta 20 milhões de pessoas adicionais: agora estou diante do “homem que impactou mais de 40 milhões de pessoas”.

Ponho-me a analisar a primeira página. “Autorresponsabilidade”, “receita infalível”, “resultados em pouco tempo”… leio essas coisas e penso em Voltaire. Paulo Vieira tenta incentivar-me: “Desperte todo o poder que existe em você”, mas não consigo senão pensar no Eclesiastes. Será que o Paulo Vieira leu o Eclesiastes? Vasculhando o sumário, cravo a vista no terceiro capítulo: “O caminho universal do progresso humano”. Súbito, ouço Voltaire a gritar: “Ô malheureux mortels! ô terre déplorable!“.

E imagino, por um capricho, Pangloss a palestrar com Paulo Vieira: “Oh, doutor Paulo Vieira! Como tudo é tão simples! O método do senhor é um verdadeiro balde de luz! Estou a imaginar quão melhor seria o mundo caso tivéssemos, eu e o senhor, nascido no princípio dos tempos: Roma certamente não pegaria fogo; Lucano se não haveria matado; Édipo não lhe haveria matado o pai e… Doutor Paulo Vieira! creio que esteja dizendo tolices. O que ocorreu haveria de ocorrer e tudo está tão perfeitamente bom qual deveria estar…”.

Continuo, congelado, frente ao sumário do livro. Sei que não posso prosseguir. Então me vem a reflexão: onde é que está o problema? Por que as pessoas compram Paulo Vieira ao invés de Shakespeare? Pois percebo minha profunda hipocrisia: eu mesmo já comprei paulos vieiras, e sei exatamente o que espera alguém que compra um paulo vieira. Sei também que, ao fechar um manual infalível, imediatamente se faz necessário um manual adicional.

Estamos fazendo crítica: devo eu, pois, tocar fogo em Paulo Vieira? Penso que não; o problema não está em Paulo Vieira, nem em quem compra Paulo Vieira. O problema, em verdade, está na estupidez do livro, que promete uma absoluta impossibilidade: transformar o ser humano — balda engenhoca — em uma máquina de alta performance.

Então me imagino, alegre, entrando numa livraria. Procuro pelos best-sellers, e dou-me com a obra de Paulo Vieira. Compro um volume e enveredo de volta à minha residência. Satisfeito da escolha, vejo-me, no caminho, determinado a tornar-me uma pessoa melhor. Chego em casa, fecho a porta e dirijo-me ao banheiro, folheando a nova aquisição. Subitamente, sinto latejar um profundo desconforto. Estaco, sentindo a decepção a pulsar. Então alço a vista: vejo um cínico incurável no espelho. Torno a mirar o livro, em desalento: “Autorresponsabilidade… isso não é para mim; em minha casa, o lugar desse livro é na lata de lixo”. Vou ao quarto e procuro por um volume de Voltaire.

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