O martírio de Camões

Um trecho do prefácio do segundo tomo das Obras Completas de Camões, em edição de 1843, assinado por J. V. Barreto Feio e J. G. Monteiro, passa ideia da dimensão do sofrimento do insuperável poeta:

Em todos os povos, qualquer que fosse a forma de seu govêrno, hão sido sempre odiados e mais ou menos perseguidos, segundo as conjuncturas dos tempos, os summos e verdadeiros Escritores; isto he, os que á força do pensar e á elegancia do dizer unírão em summo grao o amor da verdade e da justiça. Não puderão as leis de Athenas proteger a innocencia de Socrates contra as calumnias de um Melilo, Seneca em Roma não pôde evitar a morte debaixo da tyrannia de um Nero; e a estes puderamos ajuntar uma infinidade de escritores desta classe, philosophos, poetas e oradores, que em diversos tempos e por diversos modos soffrêrão a mesma sorte. Mas Luis de Camões foi mais infeliz que todos: se lhe não fizerão beber a cicuta, se lhe não abrirão as veias, amargurárão-lhe a vida com toda a especie de desgosto, e depois de o haverem trazido de masmorra em masmorra, e de degredo em degredo envolto na mais esqualida miseria, com um refinamento de tyrannia, cuja descoberta estava reservada aos tempos modernos, ·o obrigárão a submetter seus escritos a uma junta de idiotas e hypocritas., e escurecer elle mesmo sua propria fama, rejeitando o que lhe agradava, para adoptar 0 que elles querião; e por fim de tudo o condemnárão a morrer de fome·; morte muito mais cruel.

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Estrelas funestas, de Camilo Castelo Branco

Suspeito Camilo Castelo Branco seja o maior prosador da língua portuguesa… É realmente impressionante o patamar a que este português eleva o nosso idioma. Nestas Estrelas Funestas, Camilo, afora o estilo, conduz brilhantemente o arco dos personagens de forma a operar uma completa transformação no julgamento do leitor. Não há um único ponto de desafogo na narrativa. Desde o início, a obra prende e comove. São cento e poucas páginas narrando um casamento forçado desaguar em desgraça. O marido, bom homem, vê-lhe o orgulho transformá-lo num monstro atroz. A esposa, neurótica e intratável, vê-lhe o instinto materno transformá-la na personificação do amor. A filha, doce menina de fado maldito, sofre na carne e na alma o pior dos destinos. Desfecho implacável, obra magistral.

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O fundamento da literatura

Charles Bally, linguista suíço, faz uma reflexão virtuosíssima em seu Traité de stylistique française. Está ele exaltando a importância da língua falada, com toda a sua carga subjetiva, para a linguagem literária: diz a língua literária alimentar-se e rejuvenescer-se da língua falada. Em seguida, diz o prazer estético derivado da forma literária estar diretamente relacionado com a língua falada, uma vez que tal prazer não é senão a captação de uma “deformação sublime” operada pelo artista, que só é percebida através da comparação. Reforça Bally que a emoção, a qualidade das ideias ou sua organização jamais foram suficientes para consagrar uma obra literária, não nos permitindo citar uma única obra-prima que lhe obteve a consagração abstendo-se da forma. Charles Bally então conclui, em outras palavras, que o dia em que não houver a forma, e não houver o contraste entre a língua falada e a língua literária, não haverá mais língua literária, e a literatura estará morta. Excelente, excelente! Agora analisemos a progressão da poesia e da prosa ao longo dos séculos e tiremos nossas conclusões…

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Simplicidade e ação

Guy de Maupassant, esse grande escritor francês, discorre-lhe sobre as concepções artísticas no ensaio Le roman, disponível como prefácio de seu Pierre et Jean. O ensaio é interessantíssimo: Maupassant esboça sua visão sobre os variados movimentos literários do século XIX, diz um pouco de suas influências e aborda algumas particularidades do processo de criação literária.

Vejamos dois pontos interessantes do ensaio.

Dizendo sobre o que julga ser o papel de um artista, diz Maupassant (em minha tradução):

Para nos mover ele deve reproduzi-la (a vida) diante de nossos olhos com uma semelhança escrupulosa. Ele, portanto, terá que compor sua obra de maneira tão habilidosa, tão oculta e de aparência tão simples que seja impossível ver e indicar seu plano, descobrir suas intenções.

Isso carrega um tanto de Flaubert, aliás, a quem Maupassant considerava seu mestre. Precisão, eis o resumo. Sem floreamentos, sem rodeios ou excessos: deve o artista pintar a vida exatamente como ela é.

Esse princípio percorre todo o ensaio e influi sobre diferentes aspectos do processo criativo. Em determinado momento, Maupassant diz sobre explicações excessivas, sobre ter o artista de ficar justificando a ação de suas personagens, como que pintando seu perfil psicológico a fundamentar-lhe as ações. Diz o autor:

Portanto, em vez de explicar detalhadamente o estado de espírito de um personagem, os escritores objetivos buscam a ação ou gesto que esse estado de espírito deve fatalmente induzir este homem em uma determinada situação. E eles fazem-no comportar-se de tal maneira, de um extremo ao outro da obra, que todas as suas ações, todos os seus movimentos são o reflexo de sua natureza íntima, de todos os seus pensamentos, de todos os seus desejos ou de todas as suas hesitações.

Deixar que falem os atos; ação…

Muito me agrada o estilo de Maupassant, assim como o de Stendhal, outro escritor francês associado ao realismo. Não creio o artista deva estender-se em explicações, tratar o leitor como uma besta. Deixar que as personagens falem — ou antes, ajam — é uma técnica efetiva para construir uma narrativa instigante, comovente e real.

Continuaremos nestas notas em outra ocasião. Por ora, a mensagem é esta: quando um professor põe-se a lecionar, fazemos bem em escutá-lo.

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