Por que Machado de Assis não é primeiro escalão a nível mundial?

Tema espinhoso… Mas não há que temer. Busco há anos a resposta: por que um inglês pode prescindir de Machado, mas um brasileiro não pode prescindir de Shakespeare? Estou dizendo de um dos meus mestres, de um dos autores que mais nutro afeição… E, refletindo, ensaio a seguinte resposta: a grandeza de um autor pode ser sintetizada, em última instância, na soma entre estilo e temática da obra. Machado é nota máxima em estilo, restando-nos portanto a temática. Deixaria a desejar a temática da obra de Machado? Não creio… ainda que comparando com os maiores: há em Machado amplitude, há em Machado o conflito. Então percebo que falta algo à minha própria proposição. Que teria Tolstói que não tem Machado? Que teria Dostoiévski ou Shakespeare? Estilo, novamente, não poderia ser: Machado é mestre no mais alto grau. Mas fatalmente nosso artista não partilha do hall dos maiores autores de todos os tempos a nível mundial. Por quê? Arrisco outra opção que me parece razoável: falta vigor, dinamismo às personagens de Machado. Mas seria isso um demérito? Uma grande literatura exige uma personagem ativa ou um grande autor? Continuo sem resposta… Vem-me outra proposição: se as traduções, admita-se ou não, arranham o estilo da obra, que sobra dela? O arco de ação. Mas por que, exatamente, a grande obra deve ter um arco de ação bem definido? — aqui, sinto que avançamos… — As obras de Tolstói, Shakespeare ou Dostoiévski podem ser resumidas num diagrama, simplificadas como em atos de uma peça de teatro; já em Machado, nem todas são assim… Mas pergunto: seria esse um critério qualitativo? A que presta um arco de ação bem definido? À boa compreensão do leitor. E tem a obra artística de prestar esse serviço? Não sei, não sei… Pensei aqui concluir que o texto deve purificar o leitor, que a obra deve prendê-lo, que as histórias devem instruí-lo, que as temáticas devem ser abrangentes e que as personagens devem marcar. Mas tudo isso encontro em Machado e digo mais: bem passaria meus dias em contato exclusivo com sua obra. Portanto bem vejo: sou incapaz de considerá-lo em nível inferior. A mim, que o problema esteja nos leitores, nos críticos, nos tradutores… mas de minha boca não sairá que Machado está abaixo de ninguém!

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Literatura e solidão

A solidão absoluta, quero dizer: saber-se o único e último dos homens, seria insuportável. Somente essa, e somente nessa hipótese. Não é o caso, quanto mais considerarmos a literatura. Um único livro é fonte de companhia eterna, uma vez que a literatura estabelece um diálogo real e profícuo entre leitor e autor. Escrever para dialogar com leitores? Para ser lido no futuro? Motivações desnecessárias… Escrever é dar a sequência necessária ao diálogo iniciado na leitura. Diálogo que, por si só, não permite jamais nos classifiquemos como “sós”.

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A construção, de Franz Kafka

Talvez seja A construção a obra mais forte de Kafka. Neste conto, conciso e potente, Kafka explora verticalmente o desespero, em técnica semelhante à utilizada em O processo, porém atingindo o cume em pouquíssimas páginas. Dá-se o seguinte: um rato constrói, em trabalho de uma vida, a própria moradia (a construção). Precavido, cauteloso, elabora diligentemente uma estrutura que o proteja de invasores. Pensa em todas as possibilidades, defende-se de todas elas, estruturando assim um plano construtivo extremamente complexo. O local é a primeira das precauções: visando a tranquilidade, seleciona um lugar calmo, afastado do movimento. Mas pode algum lugar ser afastado o suficiente para que ninguém jamais o encontre? Difícil… de qualquer forma, não há essa certeza. Então se faz necessária uma camuflagem na entrada da construção; assim, mesmo que possíveis invasores se aproximassem, não perceberiam a porta da morada. Mas e se percebessem? E se, por uma única vez, um invasor a notasse e adentrasse a construção? É um risco imenso, que comprometeria tudo. Um único invasor tem poder para destruir o trabalho de uma vida! Assim, é necessário um mecanismo de defesa após a entrada… Raciocinando dessa maneira, imaginando situações sempre possíveis, temendo o risco e desejoso de eliminar em totalidade a possibilidade de invasão, o rato constrói um labirinto gigantesco, dividido em seções, repleto de corredores e encruzilhadas, beirando o impenetrável. Entretanto, a tranquilidade não vem. Obsessivo, o rato passa a imaginar situações cada vez mais improváveis. Põe-se de fora da construção, passa a monitorá-la e a fazer anotações. Imagina que, quando a buscar alimento, pode ser visto: elabora um plano de saída e entrada na morada. Quando, exausto e ainda indeciso, decide dar-se um descanso. Adentra a construção e cochila. Ao acordar, porém, passa a ouvir um ruído. Pequeno, sim; mas é necessário saber de onde vem. Seria uma ameaça? É preciso averiguar. Mas nosso rato construiu em torno de si um labirinto interminável, gigantesco, e o trabalho de inspeção levaria dias, talvez semanas! Por enquanto, somente a incerteza: pode não ser nada, mas pode ser o fim. O rato desespera-se, já não é possível a tranquilidade; o ruído continua, já não é possível saber de onde ele vem. Assim Kafka, com maestria incomum, apresenta-nos um personagem que, para defender-se uma ameaça incerta, em razão de um temor constante e insuperável, dedica a vida para construir um mecanismo de defesa, dedica a vida em busca da paz. Encontra, porém, o terror, a descrença: em seu mundo, a paz é impossível, a ameaça é um ruído constante e seu edifício estará sempre prestes a desabar.

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Contradizer-se voluntariamente

O grande artista tem, por obrigação, de contradizer-se. Pois a contradição — abominável palavra quando aplicada à arte… — não quer dizer senão que o artista deu vazão a manifestações opostas de sua personalidade. Se não se permite ambíguo, se não reconhece em si a dualidade, se não é capaz de elevar ao cume sentimentos opostos que obrigatoriamente hão de se manifestar em seu âmago, então é artista menor, amputado, ou desprovido de amplitude de alma ou simplesmente impotente, claudicante da expressão.

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