O fundamento da literatura

Charles Bally, linguista suíço, faz uma reflexão virtuosíssima em seu Traité de stylistique française. Está ele exaltando a importância da língua falada, com toda a sua carga subjetiva, para a linguagem literária: diz a língua literária alimentar-se e rejuvenescer-se da língua falada. Em seguida, diz o prazer estético derivado da forma literária estar diretamente relacionado com a língua falada, uma vez que tal prazer não é senão a captação de uma “deformação sublime” operada pelo artista, que só é percebida através da comparação. Reforça Bally que a emoção, a qualidade das ideias ou sua organização jamais foram suficientes para consagrar uma obra literária, não nos permitindo citar uma única obra-prima que lhe obteve a consagração abstendo-se da forma. Charles Bally então conclui, em outras palavras, que o dia em que não houver a forma, e não houver o contraste entre a língua falada e a língua literária, não haverá mais língua literária, e a literatura estará morta. Excelente, excelente! Agora analisemos a progressão da poesia e da prosa ao longo dos séculos e tiremos nossas conclusões…

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Simplicidade e ação

Guy de Maupassant, esse grande escritor francês, discorre-lhe sobre as concepções artísticas no ensaio Le roman, disponível como prefácio de seu Pierre et Jean. O ensaio é interessantíssimo: Maupassant esboça sua visão sobre os variados movimentos literários do século XIX, diz um pouco de suas influências e aborda algumas particularidades do processo de criação literária.

Vejamos dois pontos interessantes do ensaio.

Dizendo sobre o que julga ser o papel de um artista, diz Maupassant (em minha tradução):

Para nos mover ele deve reproduzi-la (a vida) diante de nossos olhos com uma semelhança escrupulosa. Ele, portanto, terá que compor sua obra de maneira tão habilidosa, tão oculta e de aparência tão simples que seja impossível ver e indicar seu plano, descobrir suas intenções.

Isso carrega um tanto de Flaubert, aliás, a quem Maupassant considerava seu mestre. Precisão, eis o resumo. Sem floreamentos, sem rodeios ou excessos: deve o artista pintar a vida exatamente como ela é.

Esse princípio percorre todo o ensaio e influi sobre diferentes aspectos do processo criativo. Em determinado momento, Maupassant diz sobre explicações excessivas, sobre ter o artista de ficar justificando a ação de suas personagens, como que pintando seu perfil psicológico a fundamentar-lhe as ações. Diz o autor:

Portanto, em vez de explicar detalhadamente o estado de espírito de um personagem, os escritores objetivos buscam a ação ou gesto que esse estado de espírito deve fatalmente induzir este homem em uma determinada situação. E eles fazem-no comportar-se de tal maneira, de um extremo ao outro da obra, que todas as suas ações, todos os seus movimentos são o reflexo de sua natureza íntima, de todos os seus pensamentos, de todos os seus desejos ou de todas as suas hesitações.

Deixar que falem os atos; ação…

Muito me agrada o estilo de Maupassant, assim como o de Stendhal, outro escritor francês associado ao realismo. Não creio o artista deva estender-se em explicações, tratar o leitor como uma besta. Deixar que as personagens falem — ou antes, ajam — é uma técnica efetiva para construir uma narrativa instigante, comovente e real.

Continuaremos nestas notas em outra ocasião. Por ora, a mensagem é esta: quando um professor põe-se a lecionar, fazemos bem em escutá-lo.

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A literatura enquanto alicerce da personalidade

É ostensiva a distinção de alguém dotado de cultura literária. Para além de todos os prazeres e de toda a elevação intelectual proveniente da leitura, pode-se dizer isto: a literatura forma, desenvolve, estrutura personalidades. A literatura é capaz de alargar o conhecimento do leitor, provendo-lhe de experiências que jamais teria em vida. Ensina-o a lidar com as mais variadas situações, fá-lo sentir as emoções mais díspares e extremas, atira-o sob diferentes peles, diferentes gênios, educando-lhe para a vida. Assim, o bom leitor vê-se preparado para todo tipo de situação, pois seu conhecimento reúne um inestimável arsenal de exemplos. Vê-se imune a inúmeras fraquezas, inúmeros erros cometidos por personagens que lhe entregaram uma lição. Além disso, o bom leitor compreende infinitamente melhor as outras pessoas, o mundo em redor: a vivência dos personagens passa a ser, também, parte de sua. Grita aos olhos que a literatura, numa personalidade, abranda, fortalece, desilude, engrandece — deixando, desta maneira, marcas indeléveis no temperamento e no caráter do leitor.

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O brilhante João Pereira Coutinho

Há quase uma década, a coluna da Folha de S. Paulo desse português é a atração de minhas terças. Junto de Luiz Felipe Pondé, João Pereira Coutinho constitui o meu contato exclusivo com jornais há anos. Aliás, são estes, acrescidos de Nassim Nicholas Taleb, os contemporâneos que exerceram influência mais forte e determinante em minha formação.

Mas que dizer de João Pereira Coutinho? Comecemos pela escrita: não há na Folha de S. Paulo coluna que verta mais lustroso o estilo, que trate melhor a língua portuguesa que a deste exímio português.

Em segundo lugar: a erudição. Se Coutinho, doutor em ciência política, escrevesse sobre política, eu jamais lhe acompanharia fielmente as linhas. A política, quando muito, não lhe serve senão de pretexto: os textos de Coutinho, todos eles, cavam mais fundo; suas colunas são atemporais. Cinema, literatura, filosofia, história, comportamento, estética… sobre todos esses e vários outros assuntos Coutinho escreve com o arsenal de um especialista. E não há, em Coutinho, ponto final sem eco.

Mais: o bom humor. As colunas de João Pereira Coutinho para a Folha de S. Paulo são melhor definidas, em verdade, como crônicas. E o bom humor é a qualidade soberana de um cronista. O bom humor torna o texto leve, apetitoso, trazendo-lhe uma nova dimensão e fazendo com que o cronista eleve-se muito acima da transitoriedade do assunto. Assim, os títulos dos textos de Coutinho jamais me desanimam: sei que, se lá está um Trump ou um Bolsonaro, em poucas linhas estarei imaginando-os a dançar.

Assim, pela quantidade de referências, pela abundância de reflexões, pelas aulas particulares de estilo e pelo profundo impacto que a leitura das colunas de Coutinho ao longo de quase uma década causaram, já não digo em meu pensamento, mas em minha personalidade, posso dizer que tenho em João Pereira Coutinho um mestre, um pai intelectual.

E que fique aqui registrado o meu reconhecimento.

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