Auto de fé, de Elias Canetti

A impressão que ficamos quando, logo no início deste romance, deparamo-nos com uma cena espetacular em que o protagonista, o professor Peter Kien, é abordado na rua enquanto pensa, ou melhor, é insistentemente demandado por um estranho, até que este, ignorado, toma a liberdade para empurrá-lo, porque julga-se no direito de reclamar atenção para si, a impressão que ficamos é de estarmos diante de um espírito superior. Afinal, quantos seriam capazes de conceber uma cena como esta? imaginar que pode haver um ser humano que pensa enquanto está em silêncio, e que o próprio silêncio não é, para alguns, a expectativa da comunicação? Assim, já ficamos tentados a reconhecer Canetti como legítimo dignatário da Grande Igreja. E criamos, também, uma exagerada expectativa quanto ao professor Kien. Daí que o romance converte-se numa sequência torturante, num aniquilamento progressivo e impiedoso, até que não reste o menor resquício daquela personalidade que a princípio nos impressionou. É um grande romance, não há dúvida, e há pontos em que a sequência de absurdos curiosamente confere realidade aos personagens, cujas obsessões parecem atira-los todos num estado de semiconsciência, cujas tensões psicológicas parecem colocá-los sempre a um fio de um colapso. Que mais se pode dizer? A técnica discursiva, determinado momento, cansa; mas não é falsa e é eficaz: a prova disso é que sentimo-nos tentados a dar um tiro em cada um dos personagens, tal como frequentemente ocorre com seres humanos reais. A obra, contudo, cairia melhor no teatro… E resta-nos somente reconhecer no autor a qualidade que tanta falta faz aos seus personagens: a lucidez.

A literatura brasileira já é mundialmente relevante

A verdade é que a literatura brasileira já é mundialmente relevante. Ocorre apenas que o mundo ainda não o descobriu. Mário Ferreira dos Santos, Otto Maria Carpeaux e Gilberto Freyre: estes três espíritos são os responsáveis por tal façanha, por terem legado obras sem-par na literatura mundial. É certo que, mais cedo ou mais tarde, haverá um alemão, ou um inglês, ou um americano a descobri-los, e então virão as traduções, e então virá o reconhecimento do patamar já atingido e somente não notado. Sem dúvida, tudo seria mais fácil se os afortunados herdeiros assumissem a herança e cuidassem de sua divulgação. Mas aí já é querer demais…

Revisitar Carpeaux

Revisitar Carpeaux e sua História da literatura ocidental para um exame pouco superior a uma consulta é retornar, após meia hora de leitura, com uma lista de trinta ou quarenta obras a serem lidas. Quer dizer: uma lista suficiente para guiar uns bons meses de estudo. Realmente, a História de Carpeaux é inigualável; é fonte inexaurível e companheira fiel para uma vida inteira. Nunca, nunca decepciona; e quando se evolui, quando se amadurece e o pensamento vaga por novos paradeiros, é voltar a ela e encontrar tesouros antes negligenciados ou conscientemente preteridos, para então concluir que nós mudamos, mas o Carpeaux, a despeito de nossa mudança, permanecerá sempre à nossa disposição.

Os caçadores de cacófatos

Não há senão rir, e rir a plenos pulmões, desta crítica que enxerga “um mamão” em “uma mão” e faz divertidíssimas transformações como “a não dizer” em “anão dizer”. Sem dúvida, o que fazem tais caçadores de cacófatos não é crítica literária, mas humor, e humor de ótima qualidade. É preciso estar muito ocioso, ou ser um legítimo palhaço para querer condenar um autor pelo que não disse e nem ao menos pensou em dizer, por algo só divisável numa cabeça inteiramente vazia, que devaneia em vez de prestar a devida atenção naquilo que lê.