Na literatura brasileira, nada impressiona tanto…

Na literatura brasileira, nada impressiona tanto quanto os trajes que vestiam as personagens até meados do último século. Chega a ser inverossímil que a moda europeia tenha atravessado o oceano e encontrado aceitação numa terra em que o sol, sempre pujante e presente, não faria mal se desenhado na extremidade superior de todas as páginas que este solo produziu. E então parece-nos inconcebível que haja uma literatura em que as personagens manifestem sentimentos que não um calor intolerável, uma vontade de passar a vida debaixo de um chuveiro ou, no mínimo, de ligar um ventilador. É realmente impressionante…

A despeito de toda aflição inerente…

É verdade que, a despeito de toda aflição inerente da escrita, organizar o pensamento, moldá-lo em palavras, variando formas, testando novas possibilidades e vestindo-o diferentemente a cada nova peça, tem o seu quê de prazeroso. Despretensiosamente, é possível aproveitar e tomar gosto pelo processo, sem o qual não se chega longe nas letras. O lamentável é que a literatura não se resume a estes momentos em que o pensamento parece matéria inerte e a função do artista simplesmente conformá-lo, como se, com fazê-lo, o artista se não vinculasse a ele de forma que a expressão aparenta sempre imperfeita e sempre a representar uma dolorosa separação.

Há algo de ostensivamente invasivo…

Há algo de ostensivamente invasivo nas biografias que parece sugerir ser condenável o próprio interesse por elas. O que nelas se busca é a mesma intimidade que, em vida, o bom senso manda respeitar. Mas a curiosidade humana é invencível, e as biografias são indispensáveis. Embora uma obra independa da biografia, desta o autor não se pode descolar. E são elas que nos mostram a realidade que ampara o ato artístico, realidade multifacetada, mais ou menos grata, mais ou menos inusitada, mas que sempre motiva a expressão. Deve-se a elas também a revelação de uma dimensão muitas vezes essencial para a correta compreensão de uma obra, e não há dúvida que, pelo muito que já esclareceram e contribuíram, acaba-se em paz com a culpa daquele sentimento de invasão.

Um grande escritor não escreve…

Um grande escritor não escreve para a sua geração e deve aceitá-lo. Mais difícil será o fazê-lo quanto mais perca o senso da própria grandeza ou, antes, da grandeza da própria missão. O fazer literário, o desejo de inserir-se na literatura tem de ser encarado, primariamente, como um reconhecimento do valor e do poder das letras. Manifestar-se desta, e não de outra forma, implica meditar e escolher. Por que a literatura? A reflexão logo apontará o óbvio: o escritor é alguém transformado por ela, e escreve porque assim fizeram os objetos de sua admiração.