A inteligência que se manifesta pelo estilo

É curioso como as traduções, por mais que fiéis quanto ao sentido do texto, por mais que gramaticalmente corretas, quase sempre falham em transmitir o estilo, ou melhor, a inteligência que se manifesta pelo estilo de um autor. Há algo quase sempre intraduzível de um idioma para outro, que é a organização criativa das frases que explora não somente a sintaxe, mas a semântica particular do idioma em que se discursa. Assim que a tradução o mais das vezes soa estranha, quando o tradutor prudentemente opta por transmitir o sentido, em detrimento do estilo do autor traduzido. Para fazer o contrário, é preciso permitir-se uma liberdade que estará em apuros para livrar-se da falsificação.

 

Álcool e arte

Embora já tenha brincado, num poema dedicado a Augusto dos Anjos, que eu supostamente fazia versos ao lado de uma taça de vinho, tal possibilidade é-me absolutamente impensável, e não consigo sequer cogitar um possível estímulo proveniente do álcool que facilite o trabalho criativo, especialmente em se tratando de poesia. Para fazer versos, é preciso reunir não somente toda a lucidez disponível, mas muita energia, boa disposição e silêncio, para que seja possível concentrar inteiramente o espírito na criação. Mesmo na prosa, que por vezes parece um trabalho de força, o álcool não seria senão um empecilho após as primeiras linhas, quando é preciso sustentar a concentração e avançar como empurrando as pesadíssimas palavras para frente. Do álcool, somente se extrai uma certa euforia e uma ilusão de que a ideia sairá magnífica no papel — assim como ocorre por vezes sem ele, e então temos de confrontar a realidade… Parece-me justa a comparação com um atleta de alto nível, que embora possa gostar de beber, jamais o fará nos instantes que precedem um treino sério ou uma competição.

Obrigado, Deus!

Considero uma manifestação real de Deus em minha vida o ter-me livrado de centenas de páginas de interpretação da vida de Pessoa “through a Freudian lens”, martírio ao qual eu fatalmente me submeteria para conhecer um pouco mais da vida do poeta. Então tomo conhecimento da existência deste tijolo de mil páginas, de autoria de Richard Zenith e publicado recentemente, que já nas primeiras linhas aponta as conclusões do biógrafo freudiano João Gaspar Simões. Segundo este, “nostalgia for lost childhood and the pure happiness it represented is the key to understanding the man and his work”. Que vergonha destes discípulos de Freud! Que vergonha! E o incrível é não ruborizarem ao despejar tais conclusões assustadoramente rasas e previsíveis. Há, para o discípulo de Freud, duas únicas causas para toda manifestação humana: a infância e o desejo. Nada além disso é possível, e tudo pode por elas ser infalivelmente justificado. Assim que um homem que manifeste na vida a vocação religiosa, obviamente, seja o monge ou o santo que for, fá-lo pela frustração de não ser capaz de se relacionar com mulheres, ou pela sexualidade mal resolvida. Já um artista tem de celebrar-se pela devassidão, faz arte pela necessidade de expressar traumas infantis não superados. Em todo senhor de cabeça branca há, naturalmente, um pervertido interior que lhe constitui a essência… Que vergonha! que vergonha! É espantoso notar a pobreza da psicanálise! E obrigado, Deus, muito obrigado por livrar-me dos insultos que teria de confrontar em razão do apreço que tenho pelo enorme português…

A trajetória intelectual de Hermann Hesse

A trajetória intelectual de Hermann Hesse é admirável. Os “escritos póstumos de Joseph Knecht”, mormente “As três vidas”, são como uma síntese de uma vida inteira dedicada ao estudo, de uma longa imersão nas mais altas filosofias do oriente e do ocidente; uma síntese das grandes religiões e das grandes compreensões da realidade, partindo dos elementos mais simples aos mais complexos, da moral prática às abstrações do pensamento. E ver tais linhas provenientes do autor de Demian… Não foram poucos os que tentaram harmonizar o oriente e o ocidente no último século; mas pouquíssimos o fizeram com a beleza alcançada por Hesse.