O leitor ideal

Reviso-me as notas e sorrio de minhas irritações. A verdade é que me considero, modéstia à parte, o leitor ideal. Quando abro um livro, a última coisa que desejo é irritar-me com o autor. Concedo-lhe liberdade total para dizer o que quiser, criar do absurdo ao ridículo, romper todas as barreiras morais e mais quanto achar que deva para expressar o que tenciona. O que não tenho — e orgulho-me disso — é uma cartilha para exigi-la de quem leio. Escolho, conscientemente, leituras que aparentam contrárias ao que aparento pensar. E mesmo assim, mesmo com essa abertura quase ilimitada, acabo sempre encontrando quem me atice os nervos…

Não há página vã em Tolstói

Leio páginas e páginas de Tolstói e a mente parece questionar-me: “Por que tanto tempo despendido em outras bandas?”. A sensação é de que, em Tolstói, não há página vã, estamos sempre ante personagens que confrontam o essencial. Confrontam, isto é, raciocinam, enxergam e julgam as circunstâncias que os rodeiam; por vezes, deixam-se agir irrefletidamente, então amargam as consequências psicológicas, remoendo o passado. Passado! este, sempre, objeto de tortura, fonte inesgotável de lamentos… Mas o que mais parece impressionar nestas construções tão vivas, tão cheias de verve e sinceridade, é a inserção minuciosa de detalhes que as dotam de realismo, tornam-nas mais que convincentes. E pensar na mente que pariu esses milhares de páginas douradas… é inclinar o tronco e tirar o chapéu.

A poesia é uma construção musical

A poesia é uma construção musical em que a melodia das letras entranha-se no ritmo dos versos. Sem ritmo, não há poesia. Tire-se a rima, construa-se em versos irregulares, invente-se o que quiser — mas sem ritmo, não há poesia. “Se é assim, o que é a chamada poesia concreta?” Qualquer coisa, menos poesia. Como chamar poema uma construção ilegível, indeclamável? Se queriam inventar, que inventassem também um nome para a criação — “concrema”? Disto, é claro, não se conclui que esta chamada poesia concreta não seja arte; de fato ela é, mas uma arte visual, uma arte para ser contemplada, não para ser lida ou declamada. Que atirem as pedras! Admito emocionante deparar-me com um concrema em que a palavra “amor” está genialmente disposta em formato de coração; mas continuarei a julgar o concretista como artista visual, e não como poeta.

Parece haver consenso de que um poema deve ser declamado como prosa

Parece haver consenso de que um poema deve ser declamado como prosa ou, melhor dizendo, como interpretação dramática. De onde essa ideia? É verdade: declamando “dramaticamente”, pode-se expressar emoção, pode-se fazer uma declamação apaixonante — o que não se pode, definitivamente, é transmitir a quem escuta o ritmo do poema. A razão é muito simples. O que é ritmo, na música? É a relação entre notas musicais e silêncio dentro de um compasso. O que é compasso? É um intervalo regular que se repete por quanto tempo durar a composição. Em música, toque-se as mesmas notas desrespeitando a relação que elas travam entre si, e foi-se o ritmo, foi-se a própria música. Se desejamos acelerar a execução de uma peça, alteramos o chamado tempo, que é a duração de cada unidade do compasso — ou seja, alteramos proporcionalmente a relação de todas as notas musicais dentro da composição. Se tencionamos uma execução mais lenta, basta que façamos o processo contrário. O que não podemos alterar nunca — ao menos, sem que a música seja desfigurada — é o ritmo da composição; e o ritmo, como ficou dito, exige regularidade. Por que seria diferente na poesia? De fato, não é. Se os versos de um poema regular são declamados em durações variáveis, se a entonação das sílabas não segue uma regularidade, se a pausa obrigatória e padrão no final de cada verso é desrespeitada, não há como transmitir o ritmo de um poema. É impossível! Ouvindo-se o que estamos a denominar “declamação dramática”, não se pode identificar onde começa e onde termina o verso, ou quais pés o compõem — o que não ocorre quando escutamos alguém a cantar um poema. E se consideramos que o ritmo é a essência de um poema, como justificar essa maneira de declamação? Quem inventou essa regra de que um poema não deve ser cantado? Acaso a lira, aos gregos, não amparava o canto? Lamento muito, lamento em várias línguas: mas para aqueles que consideram o poema uma construção melódica, declamá-lo destituindo-lhe da musicalidade parece antinatural — independente de quantos diplomas colecione o declamador.