É curiosa a maneira de Nelson construir prosa. Seja nos romances, nos contos ou mesmo nas crônicas, é claríssima a sua obsessão em enquadrar o texto numa estética predefinida — age em prosa como fazem em verso os poetas. O andamento de suas narrativas segue quase sempre um protocolo, e o resultado é um estilo pronunciado e inconfundível. Houve o tempo em que eu julgava a padronização essencial para o grande estilo. Hoje, enxergo um pouco diferente. Admiro construções regulares, mas creio preferir variedade: velocidade num dia; noutro vagar, lenta cadência, vírgulas em vez de pontos finais. Estilos, formatos, compassos, e não dinamismo estático ou lentidão terminante. O difícil, contudo, é identificar mestres em múltiplos estilos, capazes de satisfazer numa mesma obra os anseios do habituado a alentar-se trocando de prateleira.
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Uma peça e sessenta contos à força
Saíram-me uma peça e sessenta contos à força. Quanto à peça, espero ser-me a única, e não tenciono retornar a esse formato. Já quanto aos contos… é impressionante: está muito claro que o formato aborrece-me, contudo estou ciente que o trabalho não acabou; sinto-me em dívida, psicologicamente obrigado a terminar o que comecei, e é certo que não chegou o momento de brindar-me com o ponto final. Uma peça e sessenta contos à força: impelido pela consciência de que há temas sobre os quais não posso deixar de escrever.
Uma cena espetacular!
Uma cena espetacular! Estava eu, numa fila, esperando. A demora permitiu-me reparar uma pequena televisão ligada numa das extremidades da sala. Nela, um sujeito topetudo à moda, trajado num paletó vermelho brilhante, segurava um microfone e cantava emocionadamente. Não o conhecia, nem podia escutá-lo, posto estivesse com fones de ouvido. Mas com certeza seria algum dos mais famosos cantores da atualidade, pois cantava em palco suntuoso, apoiado por banda enorme, com quinze backing vocals a corrigir-lhe a voz. E havia muita, muita gente na plateia. Contudo, não era nada disso que eu reparava. O que me divertia era imaginar que, a qualquer momento, as mulheres da plateia atirariam as calcinhas no homem, como faziam poucas décadas atrás. Quando a câmera as punha em foco, os olhares confessavam o momento estar próximo. A fila andou um pouco, e eu continuava atento. Então comecei a notar que havia algo estranho naquele espetáculo. Que eu não conhecesse o artista, não estranhava: dificilmente eu seria capaz de identificar uma única face entre as dez mais conhecidas destes dias. Mas algo não se encaixava… Não era o paletó vermelho, nem o vistoso topete… o tecladista? Ah! então percebi! E não foi sem espanto que distingui, atrás do palco, os detalhes do ambiente. Trocaram de tomada e, por outro ângulo, veio a certeza: o espetáculo passava-se numa igreja!
Sexta-feira!
Algo absolutamente impossível para um homem de outros tempos seria compreender o que se passa no peito, nas veias e na mente da esmagadora maioria dos homens modernos quando o calendário declara ser sexta-feira. Sexta-feira! Maravilhosa sexta-feira, em que o sol raia prenunciando a alforria de milhões de almas! E o homem moderno, banhado desta bênção magnífica, sente-se tomado de uma euforia emocionante e indescritível. Uma vez por semana, experimenta uma efusão tão forte que homens de outros tempos talvez passassem a vida inteira sem sentir qualquer coisa semelhante. Lágrimas, júbilo, berros e gratidão aos céus! Sorriso no rosto e o peito querendo explodir! Na quinta nunca há esperança, é como se o escravo já estivesse há longos e exaustivos anos trabalhando fatigado, infeliz, abatido, e ciente de que assim teria de passar o restante de sua vida medíocre e frustrante. Então a sexta-feira! sempre inesperada sexta-feira! a prova cabal de que Deus existe e a vida não é assim tão má! Em hipótese alguma um homem de outros tempos seria capaz de compreendê-lo — e, provavelmente, também não compreenderão os do futuro, posto o mundo laico já não necessite das mordomias de um calendário cristão…