É incrível notar o contraste entre textos antigos e textos modernos. Há nos antigos uma inocência — ao menos, parece-nos ser esta a palavra correta — que nos causa estranheza. Não podemos compreendê-los: há textos que a nós soam como escritos por crianças, ou por seres provenientes de outra raça, habitantes de outro mundo. Mais: os antigos, em sua maioria, quase sempre buscavam versar sobre o essencial — algo raríssimo em tempos modernos, onde a literatura é consagrada ao corriqueiro. Os textos antigos distinguem-se pela expressão de uma admiração, de uma reverência para com a realidade que parece-nos inimaginável. O homem moderno é destituído da faculdade do espanto: para ele, a existência é tediosa e o mundo enfadonho, velhíssimo e banal.
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O português e suas infinitas anomalias gramaticais
O português parece-me, entre todas as línguas que conheço, a mais rica em anomalias gramaticais. Talvez por isso esteja entre as mais difíceis de se escrever bem. No português, há territórios imperscrutáveis a estrangeiros, territórios em que mesmo os nativos acham-se em desorientação. Que dizer, por exemplo, de nossos verbos abundantes, isto é, os de particípio duplo? Provam eles que o que se diz na rua sempre acaba pautando a gramática — ainda que a lógica esperneie. E que mais? Provam eles que a gramática portuguesa é frequentemente ingrata, porque o que se diz na rua hoje só irá para a gramática de amanhã. Os exemplos são infinitos. Em Portugal, por exemplo, já está mais do que consagrado o uso das variantes reflexivas do pronome se (si, consigo) referindo-se ao interlocutor de uma conversa. No Brasil, há um verdadeiro samba entre pronomes e verbos na função de 2ª pessoa do singular: a depender da região, diz-se “tu” a quem se diz “vai” no presente; utiliza-se o oblíquo “te” referindo-se àquele que se chama de “você”; conjuga-se, também, o imperativo na 2ª pessoa quando os outros modos verbais são conjugados na 3ª; entre inúmeras outras anomalias dignas de nota. Pois bem! Como estabelecer uma linha entre o certo e o errado? como se orientar? Sabemos que o uso, em última instância, dita a correção. Mas o artista que medir-se unicamente pelas ruas fará arte de segunda categoria. Se aferra-se à rigidez da gramática parecerá engessado, esquisito e artificial; se abraça o falar do povo soará inculto como ele e construirá linhas estética e eufonicamente horrorosas. Mas aí está o segredo: para o artista não há certo ou errado; há ferramentas, meios de expressão. O grande artista absorve tudo e tudo subjuga à sua arte. Vale-se da gramática quando lhe é conveniente, fazendo de idêntica forma com a linguagem coloquial — ele paira acima de ambas, e sua arte dá abrigo à linguagem em suas mais diversas manifestações.
A melhor narrativa exige estruturação metódica
Experimentações diversas têm-me induzido a pensar que a melhor narrativa exige estruturação metódica. É verdade: faz-se prosa de mente livre, deixando-a fluir, com resultados interessantes. Contudo o efeito de uma narrativa é quase sempre mais fraco se lhe notamos grandes lapsos estruturais. Por que é tíbia? por que não convence? Frequentemente encontramos a resposta em seu encadeamento, na maneira como está organizada e progride. Da parte do artista, parece interessante sentar-se e construir com liberdade total, desprendido de amarras estruturais. Entretanto, parece haver aí um engodo. A grande arte aparenta exigir um artista onisciente que, a cada passo, esforça-se por simular a naturalidade do que está a criar.
A imagem que fazemos de autores e obras, com o tempo, cria vida e se move
A imagem que fazemos de autores e obras, com o tempo, cria vida e se move. Então podemos experimentar impressões impossíveis no instante contíguo ao contato com eles, impressões que exigem distanciamento e maturação. Se, por um lado, essas impressões podem expandir nossa compreensão, por outro podem afastar-nos do mais importante. Por isso, daqueles que nos são caros, a releitura é tarefa obrigatória.