Como é possível?

“O homem nunca se assume pouco inteligente” — assim disse e adiciono: foi-me a maior humilhação descobrir-me, já adulto, um analfabeto. Senti-me absolutamente humilhado ao perceber-me incapaz de ler em meu próprio idioma e, portanto, encontrei-me exatamente um analfabeto. Intolerável! Um único recurso de estilo — estes presentes em cada frase de um grande escritor — privava-me do sentido de um período — um verdadeiro terror julgar inútil o próprio dicionário! — Mas por que digo isso? Percebendo-me apedeuto, passei a estudar gramáticas com fervor quase religioso. Hoje, a surpresa: estes livros maçantes têm-me parecido agradáveis. Como é possível?

Camões é Os Lusíadas

Diz Pessoa:

Camões é Os Lusíadas. O lírico, em que os inferiores focam a admiração que os denota inferiores, era, como em outros épicos de sensibilidade também notável, apenas a excedência inorgânica do épico.

E, noutra ocasião:

Chora Camões a perda da alma sua gentil; e afinal quem chora é Petrarca. Se Camões tivesse tido a emoção sinceramente sua, teria encontrado uma forma nova, palavras novas — tudo menos o soneto e o verso de dez sílabas. Mas não: usou o soneto em decassílabos como usaria luto na vida.

Que dizer? Primeiramente, é diminuir Camões classificá-lo como poeta épico: Camões era poeta. Como Pessoa, poeta de manifestações múltiplas, grande poeta. Em seguida, o julgamento estético. Resumir a poesia à forma é tão rasteiro quanto julgar um romance pelo número de páginas. Há sonetos em que se encontra tudo, exceto o Petrarca. O que convém é perguntar: que faz o poeta em decassílabos? é possível enxergá-lo em seus sonetos? Notamos o óbvio: quando chora Camões, Camões é que está a chorar. E, fosse-me o vocabulário, adicionaria que o choro é mais belo porque compartilhado, porque estabelecedor de um elo com o passado e manifestante da empatia, da humildade e do respeito. A originalidade não exige a criação de um novo formato, a sinceridade não tem obrigatoriamente de inventar o modelo da própria expressão: basta que se expresse. É notório o brilhar do poeta quando, a compor sob regras conhecidas, exprime-lhe a alma individual.

A crença literária, bela e silenciosa…

A crença literária, bela e silenciosa, o sofrimento íntimo e tímido, a resignação solitária… nada disso parece existir. O que existe e abunda é a vaidade desmedida, o instinto gregário infame unido à necessidade de validação pelos outros. Existe o impor a própria visão de mundo, a exigência de concordância, a intolerância ante o dissidente, a certeza e o orgulho da própria distinção. Pregar, repelir, exigir são os verbos corriqueiros — nunca intransitivos, sempre exigindo um complemento pessoal. Às vezes parece a literatura prestar um desserviço à compreensão do mundo objetivo.

O que se distingue num artista é a força e a multiplicidade de suas manifestações

O que se distingue num artista é a força e a multiplicidade de suas manifestações. Criatividade não é senão a capacidade em apresentar ideias múltiplas com potência. Por isso todo grande artista, desenvolvendo-se, tende à variedade e aos excessos e torna-se gradativamente mais radical em suas manifestações. Em geral, acabam ceifados desta terra antes de se darem por satisfeitos. Mas há, também, os que se recolhem no silêncio após convictos de que disseram, até a última palavra, o que haviam de dizer.