Viver num lugar quieto, próximo a um mar ou qualquer beleza gratuita e não agressiva, livre de preocupações financeiras — já fazemos literatura… — e obrigações não voluntárias. Comida, segurança e um teto. Isso já é muito. Já é idealizar o impossível. Tiremos o lugar quieto e o mar: puro luxo. Mas ter o resto é também uma impossibilidade. Quer a razão dizer que, deste resto, tire-se qualquer coisa e a paz torna-se inviável. Muito bem! Exatamente! Pois fique com comida e teto, — a custo de muito trabalho, — e esteja feliz!
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Os homens das letras
O determinismo é repugnante. Em todas as suas inumeráveis manifestações, sempre se apresenta em aspecto medíocre e infame. Entretanto, há coisas que causam espanto. Por exemplo, os homens das letras. Vislumbrar toda a conjuntura que enfrentam, e ainda assim dedicam uma vida à construção de uma obra… Privações, renúncias, angústias, humilhações… E lá estão eles, superando obstáculos, com uma determinação injustificável, diante de um horizonte isento de qualquer compensação, trabalhando dia após dia. A explicação só reside numa espécie de dever, incompreensível para a maioria e que excede o senso racional. A motivação individual pode muito bem conduzir a insanidades, desde que se abstenha do uso da razão. Difícil não dizer destes homens estimulados por algo que lhes extrapola…
Os diários de homens de outros tempos
É sempre com um sorriso na face que leio diários de homens de outros tempos. É maravilhoso comparar-lhes as rotinas, os meios, tudo!, com o que posso chamar de minha realidade. Fecho, agora, o minúsculo Diário íntimo de Fernando Pessoa, que cobre meros dois meses da vida do poeta. É simplesmente incrível o exercício da comparação, usando-me de cobaia. A primeira necessidade, sempre que leio este tipo de diário, é-me adaptar o sentido de algumas palavras e expressões. Por exemplo: o poeta diz por várias vezes “levantei-me cedo”, ou “vim cedo para a Baixa”. Isso quer dizer, no meu idioma, “acordei às nove”, “saí de casa às dez”. Depois, a rotina. O poeta vivia a dar passeios por Lisboa, divertia-se de domingo a domingo, caminhando de um escritório a outro, onde remetia cartas pessoais e compunha versos. Entre os passeios, paradas inúmeras na ilustre Brasileira para conversar com amigos e conhecidos. Vez ou outra, uma tarefa rápida, que era seguida de mais passeios e mais palestras, quase sempre literárias. Que é isso? Como é possível? Um animal como eu, rebento de uma geração escrava, não consegue assimilar. É literatura? Fizesse eu um diário, aos vinte e quatro anos, como o poeta, bastaria relatar um único dia para dizer como eram todos: “Acordei de péssimo humor às 5h30. Fui ao trabalho. Deixei-o às 17h30. Faculdade. Esgotado, cheguei em casa às 22h45. Dia infeliz”. E que dizer das conversas, da leitura de poemas em plena segunda-feira? Sobe-me um arrepio. Se eu visse, ao vivo e em cores, um sujeito a declamar um poema, ou a simplesmente dizer que leu este ou aquele romance, ser-me-ia como presenciar um rajá, montado num elefante, a passear pelas avenidas de minha cidade. Inacreditável! Mas a leitura agrada-me e escancara-me, como nenhuma outra, o sujeito que realmente sou.
Incompatibilidades entre mentes superiores
É curioso notar algumas incompatibilidades entre mentes superiores. Parece haver um elemento obscuro que, em alguns casos, força-lhes a repulsão. Digo isso pensando em Pessoa e Nietzsche, ou melhor, em Pessoa para com Nietzsche. O português referiu-se ao alemão como um asceta louco admirador da força e do domínio. Noutras notas, a menção a Nietzsche vem quase sempre carregada de um tom pejorativo. O curioso é o seguinte: como artistas, há entre ambos muito em comum. No breve ensaio intitulado Apontamentos para uma Estética não aristotélica, Pessoa defende uma estética assentada na força, uma estética onde o grau supremo de expressão atinge-se pela potência máxima, uma estética em que o artista “force os outros, queiram eles ou não, a sentir o que ele sentiu, que os domine pela força inexplicável, como o atleta mais forte domina o mais fraco, como o ditador espontâneo subjuga o povo todo (porque é ele todo sintetizado e por isso mais forte que ele todo somado), como o fundador de religiões converte dogmática e absurdamente as almas alheias na substância de uma doutrina que, no fundo, não é senão ele próprio”. Nietzsche, um símbolo da força de expressão, progenitor de uma obra onde as exclamações saltam das folhas como foguetes, dizia que “a grandeza de um artista mede-se segundo a intensidade empregada para atingir o grande estilo”. É um belo resumo da teoria estética de Pessoa. Mas, ainda assim, incompatíveis…