Convicções profundas, só as têm as criaturas superficiais

Hoje, vamos destes excertos de Fernando Pessoa:

Se há fato estranho e inexplicável é que uma criatura de inteligência e sensibilidade se mantenha sempre sentada sobre a mesma opinião, sempre coerente consigo própria. A contínua transformação de tudo dá-se também no nosso corpo, e dá-se no nosso cérebro consequentemente. (…) Ser coerente é uma doença, um atavismo, talvez; data de antepassados animais em cujo estádio de evolução tal desgraça seria natural.

A coerência, a convicção, a certeza, são além disso demonstrações evidentes — quantas vezes escusadas — de falta de educação. (…)

Convicções profundas, só as têm as criaturas superficiais.

Tornando-me um especialista

Escrevo um conto mentalizando frieza e aridez, e noto como já estou tornando-me um especialista neste tipo de narrativa que não faz senão suscitar sentimentos desgostosos. Privo-a de qualquer cor, qualquer vivacidade, qualquer emoção. Proíbo, também, as exclamações: torno forasteiro o espanto. Uma palavra para descrever o cenário. Adjetivos escassos. O arco de ação, naturalmente, cruel. Finalizo o trabalho, e o resultado é assombroso. Penso imediatamente em Swift. E imagino-me, em seguida, banido da Raça Humana e difamado pelos séculos dos séculos.

O cemitério das grandes obras

Fico aqui, pensando, na dimensão do cemitério das grandes obras. Por uma tendência natural, são os maiores artistas atraídos ao isolamento e, por uma consequência também natural, permanecem em maior parte no anonimato. Alguns — seriam muitos? — acabam recompensados pela história. Mas que dizer dos outros? quantos seriam? Nunca tive a oportunidade de entrar numa biblioteca antiga; tivesse-a, ser-me-ia obrigatório estimar a proporção de anônimos nas prateleiras literárias. Não que haja justiça neste mundo, nem que se deva escrever almejando qualquer prêmio, mas uma breve reflexão no referido cemitério faz-me a mente negrejar por completo. Pensar no esforço de uma vida, na postura corajosa e na resistência, a duras penas, desperdiçada… inútil como todo o resto… Penso nisso e maldizer o mundo parece-me uma obrigação.

Deveres do artista

Outra de Pessoa:

A indiferença para com a Pátria, para com a Religião, para com as chamadas virtudes cívicas e os apetrechos mentais do instinto gregário são não úteis, mas absolutamente deveres do Artista. Se isto é amoral, a culpa é da Natureza que o mandou criar beleza e não pregar a alguém.