A psicologia sem alma

Outra de Farias Brito:

Numa coisa andaram acertadamente os psicólogos modernos no qualificativo que deram à sua ciência de “Psicologia sem alma”. Realmente a psicologia dos tratados, feita nos laboratórios de experimentação, com suas descrições anátomo-fisiológicas, com seus quadros demonstrativos, com suas tentativas de medida das sensações e da duração dos atos psíquicos etc., é, não há como negá-lo, e forçoso é reconhecer que a expressão é justa e precisa, “uma Psicologia sem alma”. E isto equivale a dizer uma Psicologia morta; o que significa: uma Psicologia que nos não instrui, nem edifica, que nada nos diz sobre a verdadeira significação da energia que reside em nós: dinâmica puramente exterior, inconsciente e fatal, que em vão se esforça por explicar o espírito em função da matéria, deixando-nos sempre no vazio e no escuro… Muito mais instrutiva é, decerto, a Psicologia dos poetas e dos romancistas, que jogam, é verdade, com personagens fantásticas, mas inspirados na observação dos fatos e criados pela imaginação sob a pressão mesma da vida, senão reais, pelo menos possíveis, sendo de notar que é sempre das próprias paixões, das próprias lutas e sofrimentos, dos próprios sonhos e aspirações, que nos dá o artista, em seus personagens, a descrição viva e palpitante.

É curioso notar que este trecho, que serve de abertura a O mundo interior, data de 1914, anos antes da expansão avassaladora da tal psicologia sem alma, que veio a se consagrar soberana no ocidente. É inútil dizer que uma psicologia como essa não pode, muito antes de edificar, meramente apresentar uma interpretação coesa do que seja o homem e de como este se manifesta: os próprios meios utilizados para tal tornam a tarefa impossível. Ainda que se admita haver uma gama enorme de manifestações que extrapolam o escopo desta “psicologia dos tratados”, o não analisá-las nunca implica ignorá-las, uma vez que se esboçam conclusões sobre o homem a despeito de não considerá-lo em sua totalidade. O resumo: evitando o anticientífico, a psicologia cem por cento científica é também cem por cento fracassada.

Os pontífices da lucidez humana

Poucas obras suscitam gargalhadas tão sinceras quanto as destes “homens da ciência”, como Max Nordau e Cesare Lombroso, que se arrogam o papel de pontífices da lucidez humana e juízes supremos da sanidade mental. Enfim, é preciso admirá-los pela ousadia de empacotar os maiores gênios da história da humanidade, de Mozart a Shakespeare, e taxá-los todos de loucos degenerados. São eles os verdadeiros pais da psiquiatria moderna, que tem no bobo alegre o modelo perfeito de sanidade mental. Um homem comum facilmente identifica o original como doente, mas é preciso ser um visionário para enxergar na própria criatividade um distúrbio mental. Assim como palhaços talentosos, estes homens não merecem de nós senão aplausos efusivos e enorme gratidão.

O início da vida adulta

O início da vida adulta é uma fase crítica porque o jovem se vê pressionado a tomar decisões de consequências duradouras sem que se tenha decidido com firmeza sobre elas ou, nalguns casos, sem que tenha personalidade o suficiente para assumir as próprias decisões. A isso soma-se o caso frequente de dependência financeira, que acaba acarretando uma submissão a conselhos e opiniões. Assim, quase sempre cede à suposta “sabedoria dos mais velhos”, quando esta em verdade é-lhe útil apenas enquanto esteja em conformidade com aquilo que verdadeiramente deseja para si. Do contrário, tais conselhos serão somente o empurrão ao abismo que lhe causará o mais severo arrependimento que já experimentou — arrependimento, porém, necessário para que amadureça, e perceba só valer a pena uma vida em que as consequências sofridas são frutos de escolhas pessoais. O divertido, em suma, é que na maioria dos casos bastariam uns poucos anos a mais para que as decisões fossem tomadas de maneira mais sensata; mas não, por algum motivo é preciso tomá-las precipitadamente, talvez por ser o próprio erro fundamental.

A chama da vocação

Talvez seja mesmo impossível explicar a um imbecil doutrinado na psicanálise, que dedicou a vida inteira aos interesses mais mesquinhos, cultivou as relações mais fúteis e jamais presenciou um ato nobre, um ato corajoso de assunção que contrarie aquilo que é conveniente o que é essa chama, esse impulso ativo que, uma vez manifesto no espírito, traça uma linha divisória na vida daquele que o experimenta. E é também inevitável que um sujeito como o primeiro utilize as lentes que possui para julgar ações alheias: de que outra forma poderia fazer? Assim que o próprio insulto é inevitável, e talvez tenha de ser perdoado por originário de uma incompreensão involuntária. De um lado, temos uma resolução inquebrantável, um espírito disposto às últimas consequências e a tudo largar pela missão que lhe parece a finalidade da existência; temos uma transformação por vezes tão completa que anula qualquer identificação com o passado. Do outro lado, temos um homem comum.