Uma cena espetacular!

Uma cena espetacular! Estava eu, numa fila, esperando. A demora permitiu-me reparar uma pequena televisão ligada numa das extremidades da sala. Nela, um sujeito topetudo à moda, trajado num paletó vermelho brilhante, segurava um microfone e cantava emocionadamente. Não o conhecia, nem podia escutá-lo, posto estivesse com fones de ouvido. Mas com certeza seria algum dos mais famosos cantores da atualidade, pois cantava em palco suntuoso, apoiado por banda enorme, com quinze backing vocals a corrigir-lhe a voz. E havia muita, muita gente na plateia. Contudo, não era nada disso que eu reparava. O que me divertia era imaginar que, a qualquer momento, as mulheres da plateia atirariam as calcinhas no homem, como faziam poucas décadas atrás. Quando a câmera as punha em foco, os olhares confessavam o momento estar próximo. A fila andou um pouco, e eu continuava atento. Então comecei a notar que havia algo estranho naquele espetáculo. Que eu não conhecesse o artista, não estranhava: dificilmente eu seria capaz de identificar uma única face entre as dez mais conhecidas destes dias. Mas algo não se encaixava… Não era o paletó vermelho, nem o vistoso topete… o tecladista? Ah! então percebi! E não foi sem espanto que distingui, atrás do palco, os detalhes do ambiente. Trocaram de tomada e, por outro ângulo, veio a certeza: o espetáculo passava-se numa igreja!

Palavras de ordem e palavras de ódio

Duas coisas estragam a beleza de uma religião: palavras de ordem e palavras de ódio. Um fanático objetará de pronto: “É dever do justo odiar o que é mau!”. Oh, mas é claro, meu amigo! E maus, obviamente, são eles!… Se analisarmos os efeitos destrutivos e perniciosos das religiões, se buscarmos compreender a razão de tantos cadáveres e tanto sangue ter sido derramado sob o pretexto de louvá-las e honrá-las, veremos que tudo remete ao tom lamentável com que várias de suas páginas foram escritas. O tom de ordem rebaixa o fiel a servo, e o orgulho do servo exige-lhe cobrar dos outros idêntica postura servil, ainda que não seja ordenado a fazê-lo. Do ódio, que dizer?… qualidade maligna, responsável por cegar e arrancar do homem sua humanidade, incitadora do orgulho e da ignorância, catalisadora de um ser humano pior. As religiões rebaixam-se a partir do momento em que passam a falar de adeptos e não adeptos.

Gritando diante de uma tela

Tento concentrar-me numa leitura difícil e o vizinho, gritando diante de uma tela, esmurrando as paredes, pisando forte de um lado para o outro, não quer deixar. O texto é cristão, mística cristã. E ao invés de lê-lo, absorvê-lo, reflito se devo ou não perdoar o animal que berra sem parar. Irado, ele quebrará alguma coisa, tenho certeza. Pronunciou, em cinco minutos, todos os palavrões que conheço. Parece o lateral-direito do time ter feito qualquer bobagem. Gol do adversário. Socos, berros, novos palavrões. E o meu abafador de ruído somente abafa a porcaria do ruído. Devo perdoá-lo? Tento pensar e um insulto invade-me a mente. O animal arrisca uma parada cardíaca por nada, e o espetáculo perde a graça porque coloca meu quarto a tremer. Perco completamente o fio da narrativa e a paciência. Atiro o livro a qualquer canto e deixo que o juízo me convença: o “próximo” inviabiliza qualquer argumento cristão.

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Uma feira de personagens culturais

Trecho de Luiz Felipe Pondé em seu Ensaio Teologia do niilismo – A inteligência do mal, escrito originalmente para a revista russa Dostoievski y mirovaia kultura e disponível em seu Do pensamento no deserto:

Religião e teologia não são áreas do conhecimento com o mesmo valor epistêmico que biologia ou sociologia. Evidentemente que livros continuam a serem escritos em ambas as áreas, mas livros não são sinais claros de valor epistêmico. Mesmo a filosofia da religião perdeu muito com a chamada morte da metafísica. O foco dissolutivo deste fato se encontra na inconsistência de qualquer forma de conhecimento que não relacione de modo produtivo a dedução racional com a indução empírica. É evidente a relação com a ciência moderna como referencial. Mesmo que muitos intelectuais “brinquem” de pós-modernos afirmando que tudo é “simulacros ou narrativas”, aviões voam e transplantes de órgãos acontecem seguindo as “convenções” da física e da biologia. Mesmo que descubramos que as mesas são constituídas de “espaços vazios”, continuaremos a colocar pratos em cima dela sem que caiam “no vazio quântico”. Além dessas “brincadeiras quânticas”, o fato é que a insegurança das construções teológicas (fruto da dúvida cética científica) é obrigada a enfrentar não só o fracasso da metafísica diante do tribunal da razão sensorialmente sustentada (drama mais ligado às ciências duras ou naturais), como também a redescoberta da sofística, agora encarnada na antropologia cultural (realidade mais típica das ciências humanas): “de qual deus você está falando?” Podem existir quase tantas teologias quanto restaurantes étnicos. É como se com a morte da metafísica, o céu tivesse ficado vazio, e sobrou apenas uma feira de personagens culturais.

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