Duas coisas estragam a beleza de uma religião: palavras de ordem e palavras de ódio. Um fanático objetará de pronto: “É dever do justo odiar o que é mau!”. Oh, mas é claro, meu amigo! E maus, obviamente, são eles!… Se analisarmos os efeitos destrutivos e perniciosos das religiões, se buscarmos compreender a razão de tantos cadáveres e tanto sangue ter sido derramado sob o pretexto de louvá-las e honrá-las, veremos que tudo remete ao tom lamentável com que várias de suas páginas foram escritas. O tom de ordem rebaixa o fiel a servo, e o orgulho do servo exige-lhe cobrar dos outros idêntica postura servil, ainda que não seja ordenado a fazê-lo. Do ódio, que dizer?… qualidade maligna, responsável por cegar e arrancar do homem sua humanidade, incitadora do orgulho e da ignorância, catalisadora de um ser humano pior. As religiões rebaixam-se a partir do momento em que passam a falar de adeptos e não adeptos.
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Gritando diante de uma tela
Tento concentrar-me numa leitura difícil e o vizinho, gritando diante de uma tela, esmurrando as paredes, pisando forte de um lado para o outro, não quer deixar. O texto é cristão, mística cristã. E ao invés de lê-lo, absorvê-lo, reflito se devo ou não perdoar o animal que berra sem parar. Irado, ele quebrará alguma coisa, tenho certeza. Pronunciou, em cinco minutos, todos os palavrões que conheço. Parece o lateral-direito do time ter feito qualquer bobagem. Gol do adversário. Socos, berros, novos palavrões. E o meu abafador de ruído somente abafa a porcaria do ruído. Devo perdoá-lo? Tento pensar e um insulto invade-me a mente. O animal arrisca uma parada cardíaca por nada, e o espetáculo perde a graça porque coloca meu quarto a tremer. Perco completamente o fio da narrativa e a paciência. Atiro o livro a qualquer canto e deixo que o juízo me convença: o “próximo” inviabiliza qualquer argumento cristão.
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Uma feira de personagens culturais
Trecho de Luiz Felipe Pondé em seu Ensaio Teologia do niilismo – A inteligência do mal, escrito originalmente para a revista russa Dostoievski y mirovaia kultura e disponível em seu Do pensamento no deserto:
Religião e teologia não são áreas do conhecimento com o mesmo valor epistêmico que biologia ou sociologia. Evidentemente que livros continuam a serem escritos em ambas as áreas, mas livros não são sinais claros de valor epistêmico. Mesmo a filosofia da religião perdeu muito com a chamada morte da metafísica. O foco dissolutivo deste fato se encontra na inconsistência de qualquer forma de conhecimento que não relacione de modo produtivo a dedução racional com a indução empírica. É evidente a relação com a ciência moderna como referencial. Mesmo que muitos intelectuais “brinquem” de pós-modernos afirmando que tudo é “simulacros ou narrativas”, aviões voam e transplantes de órgãos acontecem seguindo as “convenções” da física e da biologia. Mesmo que descubramos que as mesas são constituídas de “espaços vazios”, continuaremos a colocar pratos em cima dela sem que caiam “no vazio quântico”. Além dessas “brincadeiras quânticas”, o fato é que a insegurança das construções teológicas (fruto da dúvida cética científica) é obrigada a enfrentar não só o fracasso da metafísica diante do tribunal da razão sensorialmente sustentada (drama mais ligado às ciências duras ou naturais), como também a redescoberta da sofística, agora encarnada na antropologia cultural (realidade mais típica das ciências humanas): “de qual deus você está falando?” Podem existir quase tantas teologias quanto restaurantes étnicos. É como se com a morte da metafísica, o céu tivesse ficado vazio, e sobrou apenas uma feira de personagens culturais.
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Ortodoxia, de G. K. Chesterton
Entupo-me a misantropia de quitutes e ela, em resposta, engorda. Assim completo mais um ano sozinho, sorrindo, e desta vez com um volume de Chesterton nas mãos.
Chesterton… Tivesse-o lido aos vinte, talvez o teria idolatrado… Mas assim são as coisas e bom que assim sejam! Eis que, atento às páginas de Ortodoxia, irrito-me. Em seguida, porém, exalto-me. E o resumo de meu juízo, após a calmaria das reflexões, é este: grande leitura! Pois é isso o que deixam as grandes leituras: fortes impressões.
Então vamos, agora, esmiuçá-las, expor o que me agitou nesta grande obra. Chesterton começa:
The men who really believe in themselves are all in lunatic asylums. (…) If you consulted your business experience instead of your ugly individualistic philosophy, you would know that believing in himself is one of the commonest signs of a rotter. Actors who can’t act believe in themselves; and debtors who won’t pay. It would be much truer to say that a man will certainly fail, because he believes in himself. Complete self-confidence is not merely a sin: complete self-confidence is a weakness.
Parecem palavras retiradas dos meus pensamentos. Entretanto, faço a nota: quão distante está Chesterton dos cristãos atuais! A modernidade — cristãos inclusos — está contaminada até a unha deste sentimento estúpido denominado por Chesterton como self-confidence. Quando a sabedoria, queiram ou não, começa exatamente em self-distrust.
Há, hoje, uma confiança difusa, seja no homem, seja no futuro, que nos cristãos se manifesta através da esperança indiscriminada. O cristão comum de nossos dias não hesita, nem por um único segundo, a respeito do que o futuro lhe reserva ou a respeito das próprias possibilidades. O que não é sinal senão de sua absolute weakness…
Outro trecho virtuoso:
Imagination does not breed insanity. Exactly what does breed insanity is reason. Poets do not go mad; but chessplayers do. Mathematicians go mad, and cashiers; but creative artists very seldom.
Que é que conduz à insanidade? A obsessão em encontrar todas as respostas, em possuir controle absoluto sobre o meio. Por isso um matemático, um cientista, muitas vezes acaba incapaz de perceber-lhe a própria insignificância, a própria vulnerabilidade, a limitação de seus meios de ação e, considerando-se capaz de decifrar todas as variáveis, enlouquece, colapsa, pois as possibilidades humanas são, se muito, simplesmente limitadas.
Chesterton prossegue, em franco ataque ao positivismo moderno:
In so far as religion is gone, reason is going. For they are both of the same primary authoritative kind. They are both methods of proof which cannot themselves be proved. And in the act of destroying the idea of Divine authority we have largely destroyed the idea of that human authority by which we do a long-division sum.
Agrada-me essa franqueza. Chesterton ainda ressalta, em sua famigerada sentença: o problema na negação de Deus é o que se coloca em seu lugar. Fatalmente, crer nas possibilidades humanas é de uma infantilidade sem-par.
Pois bem. Eis que Chesterton começa a irritar-me. Já me indisponho com meia palavra de demagogia, meio verbo de incentivo à ação política… E se cultivo a resignação e o silêncio, então Chesterton pinta-me, subitamente, como o mais desprezível dos seres.
E vejo em Ortodoxia o que a mim, sem dúvida, é a face mais detestável dos cristãos: o maniqueísmo. Assim como sempre me causa fastio escutar de alguém o porquê de sua ideia ser a mais sensata do universo, passo a enfastiar-me da arrogância das palavras de Chesterton.
Ele começa atacando os estoicos:
Marcus Aurelius is the most intolerable of human types. He is an unselfish egoist. An unselfish egoist is a man who has pride without the excuse of passion.
Se não são como nós, pois como são odientos! E Chesterton, guiado pelas próprias convicções, classifica como os mais detestáveis aqueles que se negam a agir, a lutar, a participar ativamente da sociedade.
O que Chesterton faz, sem rodeios, é classificar a mim mesmo como um sujeito intolerável — justo no meu aniversário?… — E percebo que é impossível a nossa compatibilidade: Chesterton quer me convencer de sua razão e impelir-me à ação; eu não tenho o menor interesse em convencê-lo de nada e só quero um pouco de paz, distância e silêncio.
Chego a fantasiar, por um momento, o seguinte subtítulo para a obra: “Why me and everyone who is like me are the best human beings on the face of the earth and why everyone else who is not like me and does not think like me are intolerable and inferior”. E ouço a irônica e insuportável réplica: “Exactly. Do you have a better way to defend your beliefs?“.
Chesterton prossegue:
On the other side our idealist pessimists were represented by the old remnant of the Stoics. Marcus Aurelius and his friends had really given up the idea of any god in the universe and looked only to the god within. They had no hope of any virtue in nature, and hardly any hope of any virtue in society. They had not enough interest in the outer world really to wreck or revolutionise it. They did not love the city enough to set fire to it. Thus the ancient world was exactly in our own desolate dilemma. The only people who really enjoyed this world were busy breaking it up; and the virtuous people did not care enough about them to knock them down. In this dilemma (the same as ours) Christianity suddenly stepped in and offered a singular answer, which the world eventually accepted as THE answer. It was the answer then, and I think it is the answer now.
Ignoremos o justo mérito concedido ao surgimento do cristianismo. A partir deste ponto no livro, Chesterton passa a incentivar a ação, justificando, inclusive, a “violência” cristã. E o faz exaltando a plebe, em atitude que, novamente, traça uma clara linha entre nós. Simplesmente não suporto a convivência com alguém que me exige concordância integral.
Novas pedras atiradas contra mim:
By insisting specially on the immanence of God we get introspection, self-isolation, quietism, social indifference — Tibet. By insisting specially on the transcendence of God we get wonder, curiosity, moral and political adventure, righteous indignation — Christendom. Insisting that God is inside man, man is always inside himself. By insisting that God transcends man, man has transcended himself.
Moral and political adventure, righteous indignation… Quantos cadáveres seriam poupados sem semelhantes exaltações… Mas não prossigo: abstenho-me de convencer Chesterton. Sinto-me absolutamente desmotivado após vê-lo traçar o povo como a representação da prudência e da sabedoria.
A mim, o menor populismo já é repugnante. Exaltar a virtude popular é comprar a aprovação às custas da independência. Mas não taxo Chesterton de falso ou ardiloso; seria extremamente injusto. Entretanto, neste ponto, vejo mais prudência em Zaratustra:
É no deserto que sempre viveram os verídicos, os espíritos livres, senhores do deserto; mas nas cidades, habitam os sábios bem nutridos e célebres – os animais de trato.
Pois são eles que puxam sempre, como os asnos, as carretas
do povo.
Oportuno tocar em Nietzsche. Chesterton faz o seguinte juízo do poeta:
Nietzsche is truly a very timid thinker. He does not really know in the least what sort of man he wants evolution to produce. And if he does not know, certainly the ordinary evolutionists, who talk about things being “higher”, do not know either.
Minha observação: Nietzsche sabia exatamente qual tipo de homem desejava que fosse produzido; e esse homem é, em inúmeros aspectos, imensamente superior ao que seria o exemplo de wise man para Chesterton. Entretanto, é verdade, o homem de Nietzsche jamais será produzido em massa, pois esse homem é justamente o inverso do homem de rebanho.
Mas basta de objeções e debate! Este artigo já exige um ponto final. Assim, entremos com as conclusões.
Rege-me um princípio simplíssimo toda vez que efetuo um julgamento consciente de valor: considero o valor de algo como o saldo quando lhe contrapostas as faces positivas e negativas, exatamente como numa balança. Busco, sempre que possível, valorizar o lado positivo, pois a balança, mesmo que penda ao lado não desejado, normalmente me oferece algo que me exija o reconhecimento.
Assim, não hesito quanto a Chesterton: a exímia escrita, o humor de qualidade e a lucidez diante das grandes questões cristãs me não permitem o julgamento injusto. Falo de alguém franco e imenso.
Chesterton, porém, julga-me intolerável. Mas não sou como Chesterton: a ele guardarei espaço honroso entre os autores de minha predileção.
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