Silêncio longo rompe, e na câmara escura
Sapatos, calmamente, em direção incerta
Tropeiam percorrendo a lúgubre clausura.
Na treva um clique. Súbito, um clarão desperta
Paredes cor de sangue, em febre, ardendo forte,
Qual exprimindo, iradas, agressivo alerta.
Roncando acorda um forno, e treme-lhe o suporte;
Sobre a bancada em pedra, imóveis a brilhar
Como em expectativa as lâminas da morte.
Meticulosas mãos, em arte singular,
Fazem o aço ranger: o agudo retinente
Ecoa e anuncia: é noite de rasgar!
Envolto o teso membro em luva transparente,
Um pano umedecer faz em líquido ignoto;
De amônia escapa odor, contaminando o ambiente.
Nas mãos a prava faca, o pano, em mente o voto;
O olhar feroz atira ao âmago, qual seta,
Da câmara em que sobre um leito de aço, imoto,
Atado, um ser descansa em dormência completa:
Mordaça em couro sobre o lábio ressequido,
E o torso alvo e nu marcado em tinta preta.
A ver se ativa o mais fundamental sentido
E torna interessante a mão à noite cava
Encosta no nariz o pano umedecido.
O olhar desperta em três segundos. O urro trava
E perde-se na carne acesa, em alvoroço,
Que presa em firmes nós é convertida escrava!
Atado em mãos e pés e cintura e pescoço!
Imóvel! Preso! E o rubro aterrador invade
A mente pela vista, enquanto treme o osso!
Ao ventre nu perpassa a rígida acuidade
Como esboçando, lenta, em caprichosos traços,
Terrível e escarlate a fronte da maldade!
Deitada a superfície, inúmeros compassos
Esfolam de contínuo, e o pobre ventre fica
Em carne viva! E a mão da pele extrai pedaços…
Terror de um lado e doutro o lábio vil estica
O riso do carrasco ante o ser condenado
A abandonar gemendo a terra em males rica!
Aguarda a vez, ansioso, um frasco preto ao lado
Das lâminas. Puxado, exala alegre: é química!
Uma só gota em carne e novamente o brado
Selvagem trava! Como em assombrosa mímica,
O abrir dos olhos diz que a carne é causticada,
E queima além da derme a estrutura anímica!
Então de uma só vez despeja uma enxurrada
De gotas! E o terror é ver que a mente escuta,
De súbito, romper sonora a gargalhada!
A voz diz: “Dói?”, e ri! Perdeu a fé, a luta;
Feneceu o clamor travado na garganta
Do torturado. A mão quer mais! Pois que executa
Um ágil movimento e saca um que abrilhanta
Alçado, um canivete. E a ponta, como relha
Insere em topo do anelar. Então levanta
A unha aos poucos; força entrada. E vê de esguelha
O sofredor da junta ungueal a resistência
Romper, e o dedo estila a lágrima vermelha…
Já quase na falange, e já rota a aderência
Entre unha e carne, a folha, em movimento rude,
Arranca e cospe a unha ao alto com violência!
Quer mais a mão! Mais sangue! Avança a inquietude:
Um só não dá! É pouco, é nada! E, pois, repete
Por vezes dezenove idêntica atitude!
No chão a queratina, o forte canivete
Insatisfeito para e pensa: “Quero mais!”
Reflete junto a mente hedionda que o submete.
Implora o outro a Deus, contudo os infernais
Neurônios, trabalhando, avistam nova luz:
Cutelo, agora! Um dedo é posto, entre os demais,
À parte, a mão pressiona a outra então conduz
O cabo ao céu, e chora o dedo, sob pressão
Contra uma tábua. No alto o mau cutelo luz:
Decepa! E urra a mente em alucinação!
O sangue jorra! E o barulhento forno incita
Roncando, o dono a ver-lhe a grande agitação!
Pela segunda vez a voz perversa grita:
“Escolhe: faca ou forno”; e arranca, num instante,
A peça negra, em couro, e livra a boca aflita
Que estoura, insana, em desespero alucinante
E quer articular, mas rompe, explode a voz
Em uivo! berro! O convulsivo, agonizante
Mortal quer suplicar e o singulto feroz
Impede! E grita o olhar, a mente! A alma reclama
Misericórdia emocionada ao frio algoz!
A mãe idosa! O filho! A morte não! A cama
Sacode, quando o ser, queimando em febre intensa,
Arfante: “Por favor, senhor!” — implora, exclama:
“Por favor! Por favor!” — e lembra em dor imensa
Da mãe, do filho! E diz em desolado pranto:
“Aceito tudo a reverter essa sentença!”
E pulsa a culpa! E dói só de pensar em quanto
Hão de sofrer, penar privados do carinho!…
E o monstro assiste a cena em absoluto espanto…
Então, como em milagre a mão do ser daninho
Desfalecida, apática, a arma branca larga,
E escolhe enveredar por superior caminho.
Atira-lhe a consciência esmagadora carga;
Barbárie acumulada em uma vida inteira…
E o vil torturador verte da boca amarga:
“És superior a mim. Miro-te em verdadeira
Misericórdia. Sou terrível, monstruoso.
Nada fizeste a mim. Faço por brincadeira…
“Divirto-me da dor humana, sinto gozo
Quando faço sofrer. Mas hoje, aqui, provaste
Que és mui maior que eu. És nobre, virtuoso.
“Pois nesta sala a mim exibiste o contraste
Moral entre o poder e a sujeição. Maldito
Sou eu e minha vil vontade. Tu criaste
“O que eu sou incapaz: afeto. Necessito
De subjugar a ver em mim qualquer valor…
E tu extrapolaste a ti chorando, admito…”
Assim foi libertado o egrégio sofredor
Que carregou pra sempre as marcas da maldade;
Saiu, contudo, agradecido ao malfeitor…
Mil mortes, um perdão! Atroz perversidade
Que cede uma só vez, dizer-se acometida
— Que seja uma só vez… — da mais pura bondade
Habilitada está! A mais frouxa investida
A relevar a dor de outrem — uma só! — Mil,
Mil vezes torna o ser melhor do que essa Vida
Que dessa tal Misericórdia nunca ouviu!