Continuo impressionado com a façanha de um tradutor que arruinou-me a experiência com o Yoga sutra. Não me contive e pesquisei sobre o homem: encontrei, no site de uma universidade britânica, uma foto em que pude vê-lo, careca e sorridente, acima de um longo texto que detalha tudo quanto ele estudou desde o berço e todos os seus veneráveis títulos acadêmicos — e para ver como as aparências enganam: já estava a dizer que o sujeito lembra Buda! O meu impulso foi buscar uma maneira de contatá-lo, um telefone, e-mail ou qualquer outra coisa. Logo desisti da ideia, mas o espírito impelia-me a dizer-lhe: “Senhor mestre doutor, os seus comentários são simplesmente insuportáveis! Ler a sua tradução do Yoga sutra é como tentar assistir a um filme com alguém ao lado pausando-o a cada cena para explicar-lhe todos os detalhes, a filmografia do elenco, o contexto cultural da história, a fase exata do ciclo menstrual da esposa do diretor no ato da filmagem… tudo isso enquanto desejamos simplesmente que o filme aconteça, que uma cena siga em sequência da outra, para que possamos conectá-las, entendê-las, e travemos contato direto com o filme! Mas o senhor, não!, o senhor não o permite de jeito nenhum! o senhor pausa o filme a cada fala, para cada frase o senhor quer explanar, de imediato, a semântica das palavras, o significado subliminar das inflexões, as conotações simbólicas do diálogo… Senhor, faça um favor ao mundo: pare de comentar livros! Pare, por favor, pare imediatamente! Exima os leitores dos seus comentários!”
Meditando com o Yoga sutra de Patanjali
Incomodado por não saber sânscrito, puxo uma tradução inglesa do Yoga sutra de Patanjali e dá-se uma cena espetacular. Naturalmente, puxo o Yoga sutra interessado em ler os sutras que o compõem. Mas não é o que ocorre. Abro o livro e o tradutor, após dizer-me o quanto é difícil traduzir o sânscrito, conta-me detalhadamente toda sua trajetória acadêmica, fazendo questão de citar cada um dos temas que estudou e se especializou, cada um de seus artigos publicados, teses de mestrado e doutorado, explicando-me em seguida como são ricas as filosofias indianas, como são bestas os tradutores que não estudaram como ele, que não se especializaram em tantas áreas como ele se especializou, que ignoram a metaética e que não traduzem com um método tão arguto e diligente como o seu. Nisto, sou arrastado por uma introdução de inacreditáveis sessenta páginas! Acabou? Não acabou. A obra começa e descubro que o tradutor é, também, comentarista, e que seus comentários não se situam no rodapé ou no final do texto, mas interrompendo as linhas do autor. Para cada sutra, — e há sutras que limitam-se a uma frase, — o tradutor anexa-lhe em seguida, não tendo sequer a humildade de diminuir o tamanho da fonte, de uma a sete páginas de comentários! Que é isso? Pergunto com sinceridade: como uma obra apresentada desta maneira pode ser vendida com o título original? Segui o comentarista até perceber que, definitivamente, estava diante de uma obra desfigurada, que gera tudo, menos a impressão da original. Ler um livro de sutras é pausar, após cada aforismo, e ruminá-lo em mente. Mas isso é impossível quando logo em seguida o tradutor enceta falação interminável! O efeito gerado é exatamente o contrário: a obra perde-lhe por inteiro o caráter sintético, vai-se-lhe embora a densidade, passa de uma coletânea de sutras para um extenso e prolixo estudo de hermenêutica e filosofia comparada. É isso o que puxei da prateleira para ler? Não, não é. Independentemente da relevância dos comentários, o comentarista proíbe-me de pensar e absorver diretamente a obra, desviando-me a atenção e simplesmente impedindo a obra de falar em sua cadência natural. Termina em vírgula um sutra, e encontro-lhe a sequência quando já nem lembro sobre o que falava. Abro o Yoga sutra e leio o especialista em metaética e filosofia da linguagem; abro o Yoga sutra e, após cada aforismo, em vez de meditar calmamente, tenho o impulso de levantar-me e berrar: “Cale a boca, homem! Respeite a obra e carregue para longe de mim sua mesquinha promoção pessoal!” Que maravilha… alcanço a proeza de fritar-me os nervos com um manual de meditação!
O sono de Schopenhauer
Diz-se que Schopenhauer dormia com pistolas carregadas ao lado de sua cama. Seja vero ou não, a imagem é de uma precisão formidável. Aí está o raciocínio representado em suas virtudes e suas consequências! Que dizer? Schopenhauer, uma inteligência raríssima, pautando-se pelo que lhe ditava a vigorosa mente, não podia conter os efeitos colaterais de sua conduta racional. Dita o bom juízo ter sempre junto de si pistolas carregadas, como desconfiar da vida, dos outros, de tudo!, estando sempre em estado de alerta, temeroso e precavido, sabendo que a vida tende à morte, o sonho à desilusão, o desejo à frustração, a alegria à dor… As consequências, porém, acaso desaconselhem o bom juízo: como julgar acertada uma conduta que impossibilita um segundo de desleixo? Terrível, terrível… Pistolas carregadas ao lado do travesseiro! Viver como Schopenhauer é desarraigar a possibilidade da paz, fomentando um terror psicológico insuportável. Preferível ser uma anta e ter milhares de noites tranquilas antes que chegue a única noite fatal…
Um único verso acurado salva o dia
Se a prosa entrega alguma satisfação por fazer que pareça o trabalho produtivo, não passa nem perto do verdadeiro prazer que é compor um verso justo, que satisfaça na forma e transmita com apuro a ideia ou sentimento desejado. Não importa quantas horas se passe ruminando: um único verso acurado salva o dia e alegra o espírito, repetindo-se em mente ao infinito após a sessão de trabalho. Já a prosa não faz senão evocar um caminhão de problemas após a brevíssima e chocha sensação de dever cumprido. Incomparável…