Uma cena espetacular! Estava eu, numa fila, esperando. A demora permitiu-me reparar uma pequena televisão ligada numa das extremidades da sala. Nela, um sujeito topetudo à moda, trajado num paletó vermelho brilhante, segurava um microfone e cantava emocionadamente. Não o conhecia, nem podia escutá-lo, posto estivesse com fones de ouvido. Mas com certeza seria algum dos mais famosos cantores da atualidade, pois cantava em palco suntuoso, apoiado por banda enorme, com quinze backing vocals a corrigir-lhe a voz. E havia muita, muita gente na plateia. Contudo, não era nada disso que eu reparava. O que me divertia era imaginar que, a qualquer momento, as mulheres da plateia atirariam as calcinhas no homem, como faziam poucas décadas atrás. Quando a câmera as punha em foco, os olhares confessavam o momento estar próximo. A fila andou um pouco, e eu continuava atento. Então comecei a notar que havia algo estranho naquele espetáculo. Que eu não conhecesse o artista, não estranhava: dificilmente eu seria capaz de identificar uma única face entre as dez mais conhecidas destes dias. Mas algo não se encaixava… Não era o paletó vermelho, nem o vistoso topete… o tecladista? Ah! então percebi! E não foi sem espanto que distingui, atrás do palco, os detalhes do ambiente. Trocaram de tomada e, por outro ângulo, veio a certeza: o espetáculo passava-se numa igreja!
Sexta-feira!
Algo absolutamente impossível para um homem de outros tempos seria compreender o que se passa no peito, nas veias e na mente da esmagadora maioria dos homens modernos quando o calendário declara ser sexta-feira. Sexta-feira! Maravilhosa sexta-feira, em que o sol raia prenunciando a alforria de milhões de almas! E o homem moderno, banhado desta bênção magnífica, sente-se tomado de uma euforia emocionante e indescritível. Uma vez por semana, experimenta uma efusão tão forte que homens de outros tempos talvez passassem a vida inteira sem sentir qualquer coisa semelhante. Lágrimas, júbilo, berros e gratidão aos céus! Sorriso no rosto e o peito querendo explodir! Na quinta nunca há esperança, é como se o escravo já estivesse há longos e exaustivos anos trabalhando fatigado, infeliz, abatido, e ciente de que assim teria de passar o restante de sua vida medíocre e frustrante. Então a sexta-feira! sempre inesperada sexta-feira! a prova cabal de que Deus existe e a vida não é assim tão má! Em hipótese alguma um homem de outros tempos seria capaz de compreendê-lo — e, provavelmente, também não compreenderão os do futuro, posto o mundo laico já não necessite das mordomias de um calendário cristão…
Cahiers, de Emil Cioran
O meu estimado Emil Cioran disse, nestes Cahiers, — publicados postumamente e ainda não vertidos para o português, — que de um pensador sobra-lhe o temperamento. Bela observação! E noto que, quando penso em Cioran, o que relembro-lhe é exatamente o temperamento. Impossível não sorrir. Nestes Cahiers, onde está exposta a dimensão humana de um filósofo que concedeu ao pessimismo várias de suas melhores páginas, — ou que, como disse Fernando Savater, possuía vocação de herege, — estão praticamente todas as cenas que vêm-me em mente ao pensar em Cioran. São quase mil páginas que lhe dotam a obra de um colorido raríssimo: é o filósofo escrevendo para si mesmo, numa página, comentando Buda e Jesus Cristo, noutra acessos de raiva que experimentou em mercearias, ou situações incomuns que vivenciou. Como não sorrir ao ver um sábio, logo após um editor qualquer rejeitar-lhe um prefácio sobre Valéry que lhe custou duras horas de trabalho, exclamar para si mesmo “Terei vingança!”; ou ao ver um atleta dizer que, retornando de vinte quilômetros de caminhada, uma garota ofereceu-lhe o assento no trem; ou, ainda, ao ver um mestre do sarcasmo relatar que, conversando com Jean-Paul Sartre, ouviu do francês ser muito boa a sua “gramática romena”… Penso em Cioran e o que lhe recordo é o humor supremo, que lhe sobressai sobre todas as outras qualidades intelectuais. Cioran, talvez meu amigo predileto a acompanhar-me pelas trevas do pensamento, é também um dos que mais facilmente arranca-me um sorriso do rosto.
Palavras de ordem e palavras de ódio
Duas coisas estragam a beleza de uma religião: palavras de ordem e palavras de ódio. Um fanático objetará de pronto: “É dever do justo odiar o que é mau!”. Oh, mas é claro, meu amigo! E maus, obviamente, são eles!… Se analisarmos os efeitos destrutivos e perniciosos das religiões, se buscarmos compreender a razão de tantos cadáveres e tanto sangue ter sido derramado sob o pretexto de louvá-las e honrá-las, veremos que tudo remete ao tom lamentável com que várias de suas páginas foram escritas. O tom de ordem rebaixa o fiel a servo, e o orgulho do servo exige-lhe cobrar dos outros idêntica postura servil, ainda que não seja ordenado a fazê-lo. Do ódio, que dizer?… qualidade maligna, responsável por cegar e arrancar do homem sua humanidade, incitadora do orgulho e da ignorância, catalisadora de um ser humano pior. As religiões rebaixam-se a partir do momento em que passam a falar de adeptos e não adeptos.