Convicções profundas, só as têm as criaturas superficiais

Hoje, vamos destes excertos de Fernando Pessoa:

Se há fato estranho e inexplicável é que uma criatura de inteligência e sensibilidade se mantenha sempre sentada sobre a mesma opinião, sempre coerente consigo própria. A contínua transformação de tudo dá-se também no nosso corpo, e dá-se no nosso cérebro consequentemente. (…) Ser coerente é uma doença, um atavismo, talvez; data de antepassados animais em cujo estádio de evolução tal desgraça seria natural.

A coerência, a convicção, a certeza, são além disso demonstrações evidentes — quantas vezes escusadas — de falta de educação. (…)

Convicções profundas, só as têm as criaturas superficiais.

Tornando-me um especialista

Escrevo um conto mentalizando frieza e aridez, e noto como já estou tornando-me um especialista neste tipo de narrativa que não faz senão suscitar sentimentos desgostosos. Privo-a de qualquer cor, qualquer vivacidade, qualquer emoção. Proíbo, também, as exclamações: torno forasteiro o espanto. Uma palavra para descrever o cenário. Adjetivos escassos. O arco de ação, naturalmente, cruel. Finalizo o trabalho, e o resultado é assombroso. Penso imediatamente em Swift. E imagino-me, em seguida, banido da Raça Humana e difamado pelos séculos dos séculos.

A misantropia é um dos traços mais salutares ao raciocínio que se tem notícia

A misantropia é um dos traços mais salutares ao raciocínio que se tem notícia. Ser misantropo envolve um esforço contínuo e desafiador. Quando se é misantropo, o sujeito torna-se um estrategista por necessidade. Aprende psicologia para entender a mente dos outros, para então lhes prever o comportamento e ser capaz de evitá-los. Tem de ser especialista em estímulos emocionais para saber não suscitar nunca nenhum em ninguém. O misantropo sabe que sua sagacidade será inversamente proporcional ao desconforto proveniente das relações sociais; portanto, quanto mais sagaz, mais plenamente alcançará o objetivo de reclusão. O interessante é que o estímulo nunca cessa, o cérebro do misantropo é instigado o tempo inteiro e jamais descansa, posto sempre haver a possibilidade de alguém interromper-lhe a solidão e solicitá-lo para qualquer coisa. É como um jogo interminável, extremamente salutar à inteligência e que, mais do que qualquer outro jogo, atiça a vontade de ganhar.

Utopia é tornar-se um completo desconhecido

Utopia é tornar-se um completo desconhecido. Acordar numa metrópole e sair à rua sem que um bom-dia interrompa o fluxo matinal do pensamento. Pela tarde, a liberdade para que a mente continue o seu próprio caminho em silêncio e, pela noite, a paz para pensar. Nenhuma ligação, nenhuma troca de palavras, nada. Impossível, é claro. Do contrário, não haveria de idealizar paraíso nenhum.