Camões é Os Lusíadas

Diz Pessoa:

Camões é Os Lusíadas. O lírico, em que os inferiores focam a admiração que os denota inferiores, era, como em outros épicos de sensibilidade também notável, apenas a excedência inorgânica do épico.

E, noutra ocasião:

Chora Camões a perda da alma sua gentil; e afinal quem chora é Petrarca. Se Camões tivesse tido a emoção sinceramente sua, teria encontrado uma forma nova, palavras novas — tudo menos o soneto e o verso de dez sílabas. Mas não: usou o soneto em decassílabos como usaria luto na vida.

Que dizer? Primeiramente, é diminuir Camões classificá-lo como poeta épico: Camões era poeta. Como Pessoa, poeta de manifestações múltiplas, grande poeta. Em seguida, o julgamento estético. Resumir a poesia à forma é tão rasteiro quanto julgar um romance pelo número de páginas. Há sonetos em que se encontra tudo, exceto o Petrarca. O que convém é perguntar: que faz o poeta em decassílabos? é possível enxergá-lo em seus sonetos? Notamos o óbvio: quando chora Camões, Camões é que está a chorar. E, fosse-me o vocabulário, adicionaria que o choro é mais belo porque compartilhado, porque estabelecedor de um elo com o passado e manifestante da empatia, da humildade e do respeito. A originalidade não exige a criação de um novo formato, a sinceridade não tem obrigatoriamente de inventar o modelo da própria expressão: basta que se expresse. É notório o brilhar do poeta quando, a compor sob regras conhecidas, exprime-lhe a alma individual.

O mais vistoso impacto da modernidade na filosofia

O mais vistoso impacto da modernidade na filosofia é que o grande filósofo deixou de ser o sábio, tornando-se o raciocinador. Filosofar em tempos modernos é, quando muito, criar conceitos, mas resume-se essencialmente em articular e desenvolver argumentos lógicos em redor de temas irrelevantes. O vocábulo “filósofo” não nos evoca em mente um pensador maduro, dotado de grande sabedoria, senão alguém interessado em sistematizações, em encadeamentos de conceitos abstratos — um tarado por definições. O filósofo moderno perdeu definitivamente a condição de que gozava na antiguidade, a de professor da vida: tornou-se um profissional do raciocínio, um arquiteto da lógica, e é incapaz de atuar como preceptor ou conselheiro. Conseguintemente, a filosofia perdeu o caráter prático: deixou de implicar numa conduta moral e numa postura ante a realidade. Isolada em seu universo, ela já nada tem a dizer sobre o mundo real.

Idealizam a esperança somente aqueles que jamais a miraram em plenitude

Idealizam a esperança somente aqueles que jamais a miraram em plenitude, que jamais lhe mediram os efeitos derradeiros. Machado, que a conhecia muito bem, classificou-a como a “erva daninha que come todas as outras plantas melhores”; os gregos tinham-na como o mais terrível de todos os males… Idealiza a esperança somente o que nunca lhe reparou com atenção as sequelas destrutivas, a ruína total em que frequentemente atira o esperançoso, turvando-lhe a faculdade do raciocínio, o senso do ridículo, incitando-o a tomar decisões estúpidas e irresponsáveis, que arriscam-no juntamente de quem lhe esteja em redor. O justo é que seja o esperançoso tratado qual criança, como alguém carente de que lhe digam os limites, o que se pode e o que não se pode fazer. É sempre perigoso que ele tenha em mãos instrumentos destinados a adultos sãos e maduros.

A crença literária, bela e silenciosa…

A crença literária, bela e silenciosa, o sofrimento íntimo e tímido, a resignação solitária… nada disso parece existir. O que existe e abunda é a vaidade desmedida, o instinto gregário infame unido à necessidade de validação pelos outros. Existe o impor a própria visão de mundo, a exigência de concordância, a intolerância ante o dissidente, a certeza e o orgulho da própria distinção. Pregar, repelir, exigir são os verbos corriqueiros — nunca intransitivos, sempre exigindo um complemento pessoal. Às vezes parece a literatura prestar um desserviço à compreensão do mundo objetivo.