A ironia do pensamento racional é exigir tacitamente uma conclusão. Do contrário é declarar-se inútil, constatar que não avançou. E a conclusão é justamente o impossível, o passo em falso e a derrota! Concluindo perde-se o jogo, sepulta-se de antemão possibilidades futuras, declara-se o fim da atividade mental. Disto extraímos: se é para falhar e desistir, que se falhe e desista tarde, somente diante do pressentimento do decesso e se tomado de um impulso irresistível. Schopenhauer, uma mente brilhante, prejudicou-se ao fazê-lo muito cedo: teria tido dias mais tranquilos caso não houvesse caminhado, por quase a totalidade da vida adulta, carregando o peso de suas conclusões.
O desconforto de existir
A perturbação psicológica e a guerra aberta contra as manifestações instintivas da mente são os passos primários e fundamentais para que se alcance qualquer avanço de cunho moral ou espiritual. Portanto a angústia, efeito colateral inevitável, é traço comum entre as naturezas nobres. Os passos subsequentes variam de Buda a Tolstói, de Schopenhauer a Nietzsche — mas é impossível a evolução para um espírito que nunca experimentou o desconforto de existir.
O escritor que se atrevesse a criar um personagem como Jakob Boehme…
Se um sapateiro deu luz a centenas de páginas de interpretações metafísicas… Fico pensando: o escritor que se atrevesse a criar um personagem como Jakob Boehme cairia no ridículo. É inevitável. O raciocínio não admite tamanho contraste; recusar-se-ia inevitavelmente a creditar a narrativa. Não obstante, aí está… A primeira objeção da mente seria: “Um pensador dessa estirpe se não rebaixaria nunca a um trabalho manual”. Em seguida prosseguiria, insuportável como de costume: “Tais reflexões só brotam de uma natureza cem por cento devotada ao espiritual”. A conclusão: “História estúpida e falsa”. De idêntica maneira, julgaria caso defrontasse um Boehme vivo e falante. Nisto mede-se a vastidão da miséria do pensamento objetivo.
As páginas de Jakob Boehme
É um verdadeiro choque entrar em contato com as páginas de Jakob Boehme. O primeiro impulso é perguntar: como é possível? O universo místico que lhe permeia as linhas parece impensável, inconcebível, imperceptível ao medíocre ser humano. De onde tão engenhosa imaginação? de onde essa concepção da vida que põe de joelhos a banalidade do concreto, tornando irrisório aquilo que os olhos podem ver? A noção do sentido último, a visão dos caminhos, a filosofia que implica uma conduta… todas essas manifestações de um espírito luminoso e respeitável, do qual escuso-me de fazer juízo de valor. Mas o que mais espanta, o que trava o raciocínio e atira o cérebro em perplexidade é estar ciente, a cada página, que o autor das linhas era sapateiro!