Utopia é tornar-se um completo desconhecido. Acordar numa metrópole e sair à rua sem que um bom-dia interrompa o fluxo matinal do pensamento. Pela tarde, a liberdade para que a mente continue o seu próprio caminho em silêncio e, pela noite, a paz para pensar. Nenhuma ligação, nenhuma troca de palavras, nada. Impossível, é claro. Do contrário, não haveria de idealizar paraíso nenhum.
A vaidade conduz à hipocrisia
Parece-me a vaidade real — a profunda e inconfundível — conduzir à insinceridade e à hipocrisia, traços que se me afiguram como insuportáveis, quer na vida, quer na arte. Já notaram a face inocente de vários entre os maiores artistas de todos os tempos, como Tolstói, Dostoiévski e Shakespeare. E a inocência, caso dê as caras, não o faz senão pela sinceridade, que lhe é companheira obrigatória. É o que vemos, por exemplo, em Nietzsche, quando diz de Zaratustra a maior obra já concebida, ou quando se julga o maior entre todos os filósofos. Distorcido por línguas infames, passou por presunçoso, quando limitou-se a ser transparente como sempre foi. A vaidade manifesta-se na hipocrisia. Nietzsche viveu-lhe a obra, Dostoiévski creu com todo o espírito nas soluções que propôs. Ambos submeteram-se ao ridículo, expuseram-se. E não se humilharam, como fazem aqueles sedentos do reconhecimento, lançando mão da dissimulação.
O cemitério das grandes obras
Fico aqui, pensando, na dimensão do cemitério das grandes obras. Por uma tendência natural, são os maiores artistas atraídos ao isolamento e, por uma consequência também natural, permanecem em maior parte no anonimato. Alguns — seriam muitos? — acabam recompensados pela história. Mas que dizer dos outros? quantos seriam? Nunca tive a oportunidade de entrar numa biblioteca antiga; tivesse-a, ser-me-ia obrigatório estimar a proporção de anônimos nas prateleiras literárias. Não que haja justiça neste mundo, nem que se deva escrever almejando qualquer prêmio, mas uma breve reflexão no referido cemitério faz-me a mente negrejar por completo. Pensar no esforço de uma vida, na postura corajosa e na resistência, a duras penas, desperdiçada… inútil como todo o resto… Penso nisso e maldizer o mundo parece-me uma obrigação.
Deveres do artista
Outra de Pessoa:
A indiferença para com a Pátria, para com a Religião, para com as chamadas virtudes cívicas e os apetrechos mentais do instinto gregário são não úteis, mas absolutamente deveres do Artista. Se isto é amoral, a culpa é da Natureza que o mandou criar beleza e não pregar a alguém.