Exercito-me a tara por números. Completo, neste momento, 400 dias sem ler uma página de Dostoiévski. Tudo indica que perseguirei o recorde de 635 dias de abstinência desde o primeiro contato. Pareço divertir-me buscando em outras bandas o que já sei que não irei encontrar. A obra de Dostoiévski é um palco raro onde estão representados os verdadeiros e maiores problemas da existência humana. Mas não é isso o que eu queria dizer… Tenho o hábito de evocar-me em mente os ídolos e fazer comparações. Reparo-me os problemas e reviravoltas medíocres, então visualizo, por exemplo, o gênio órfão de mãe aos quinze, de pai assassinado aos dezessete e condenado à morte dez anos depois. Mas não é só isso. Comparo-me, também, o amargor das linhas com a luz que emana das do gênio. Tudo isso ainda que não esteja em contato físico com seus livros. Então reflito. Bem se sintetiza uma obra expondo-lhe os problemas abordados e, quando há, as apontadas soluções. Mas além disso: faz-se bem delineando os diversos matizes que a compõem. E em Dostoiévski o bom humor sobeja, ainda que o cego o não enxergue. A biografia se lhe resume numa sucessão de dificuldades das mais variadas naturezas, e a obra, sintetizada, representa um olhar esperançoso e otimista que prevalece sobre todas elas. É interessante notar o contraste, quer dizer, o aparente contraste que enxergamos quando lançamos mão da ótica míope e materialista que resume a experiência em situações “boas” e “ruins”, “sucessos” e “infortúnios” e comparamos vida e obra de grandes personalidades. Se consideramos que uma obra reflete, em grande medida, a experiência, a mente aponta-nos impressionantes conclusões.
A tendência moderna de produzir “especialistas”
Há, a nível mundial, uma tendência escancarada a produzir “especialistas”. A princípio, é natural que todas as áreas apresentem um aprofundamento e que estudos cada vez mais detalhados sejam disponibilizados ao estudante comum. Entretanto, a pergunta: e o conjunto? e a ligação entre áreas distintas do conhecimento? e a visão panorâmica, abrangente? Digo e penso em duas coisas. Primeiramente, na monumental História da literatura ocidental de Carpeaux, uma obra que, quanto mais a analiso, mais a considero valiosa: nela, que jamais poderia ser classificada como “superficial”, mais de vinte séculos de cultura estão magnificamente concatenados. O estudante vê brilhar diante de si o elo impossível e conquista, em relativamente poucas páginas, uma visão que o permite transitar pelas mais diversas correntes de pensamento. Uma obra deste tipo é o oposto da tendência intelectual vigente. Em segundo lugar, penso nos estudantes. O interesse múltiplo, o estudo diversificado não costuma fazer carreiras: cresce quem se torna um “especialista”. Tornando-se um “especialista”, o estudante flerta com a possibilidade de conhecer uma área e ignorar todas as outras, ignorando, também, a aplicabilidade real do próprio conhecimento. Muito bem! Que vale mais, ou para que serve o estudo? Parece-me, nas respostas, residir a principal distinção entre os intelectuais modernos.
Nietzsche simboliza a liberdade de espírito
É muito difícil reconhecer a autonomia daqueles que parecem incólumes às explosões de Nietzsche. Gostam de apedrejá-lo, tirá-lo do contexto, destacá-lo da nobreza de caráter que lhe é peculiar. Nietzsche simboliza a liberdade de espírito, a potência, a coragem intelectual. Desmerecê-lo parece-me, sobretudo, desmerecer estas três nobilíssimas qualidades.
Mas peço o impossível…
Energizemo-nos de Zaratustra (em tradução de Mário Ferreira dos Santos):
Mas peço o impossível; rogo, pois, à minha altivez, que acompanhe sempre a minha sabedoria!
E se um dia me abandonar a minha sabedoria — ah! Ela gosta tanto de voar! — possa então minha altivez voar com a minha loucura!