O monstro moderno

Mário Ferreira dos Santos, sobre Nietzsche:

Era ele adversário do Estado, o monstro moderno, o Moloch dos nossos dias, o devorador de homens e de consciências, a mais brutal criação da fraqueza humana e que terminará por cansá-la totalmente, a ponto de, um dia, abominar todas as formas de opressão, e destruí-las com um ímpeto que fará estremecer as páginas da história. Não o poderá facilmente compreender esse homem de hoje, esse cativo que lambe as algemas, esse “Haustier”, esse animal domesticado, que se acostumou a adorar o monstro de que ele fala.

A nota data de 1957. Que dizer? Pouco mais de meio século, e podemos verificar a precisão da brilhante observação de Mário. O colapso do estado moderno é inevitável, entretanto… o “cativo que lambe as algemas” continua, passivo, a lambê-las, num estado de inconsciência admirável em que não exibe o menor sinal de esgotamento. A situação só fez agravar: o monstro cresceu, ampliou-lhe o domínio, e já dispensa qualquer pudor. A questão, porém, perdura estática: até quando? De um lado, a reação é inevitável; doutro, o despertar parece distante. O que resta evidente é que, como bem previu Mário, chegará o dia em que o “devorador de homens e de consciências” ver-se-á diante de uma explosão violentíssima e extraordinária, oriunda de uma letargia que aparentava perpétua.

A prosa de Paul Valéry

Incrível como a prosa de Paul Valéry é contagiante! Especialmente nos ensaios, deparo-me com uma vivacidade enorme, inédita, em linhas que expõem grande curiosidade, erudição em variadas áreas, leveza no manejo do idioma, precisão nas observações e, acima de tudo, um olhar a mim todo novo. Surpreendo-me, por exemplo, com alguns adjetivos. Discorrendo sobre experiências intelectuais ou literárias, lá está o cativante délicieux, ainda que na forma adverbial. Salvo engano, esse adjetivo jamais foi evocado uma única vez por estes dedos mórbidos, nem em prosa, nem em verso, nem em nada. Incrível! E, analisando as descrições de Valéry, a assimilação intelectual de suas experiências, suspeito-me a percepção falha — ou será a experiência? Tanto faz… Trabalhemos! E comecemos com esta nota: a prosa de Valéry é deliciosamente empolgante!

Uma vida paralela

O artista do século XXI ou, antes, o sequioso da alta cultura necessita de uma espécie de vida paralela, de um destacamento do meio para que, sozinho, possa caminhar. A alta cultura repele a vida cotidiana moderna, o meio lhe é nocivo, hostil, e não há nada que se possa fazer para absorvê-la senão trancar-se em isolamento. Do contrário, é contaminar-se e perder a capacidade de distinção, apodrecendo como o fez a própria cultura. Se, de um lado, tamanho contraste pode evidenciar uma perda gradativa do papel, ou talvez da influência da alta cultura na sociedade, doutro, a nível individual, restam facílimas as decisões.

Preferências da maioria

Continuo, obsessivo, em meu diálogo mental com Tolstói. É verdade, nunca conheci pessoalmente um mujique, nada sei sobre suas preferências artísticas. Mas sei sobre as da maioria brasileira. Viro-me a Tolstói e digo: “Dê uma olhada”. Abro, de uma só vez, as listas de maiores bilheterias no cinema, de músicas mais tocadas e de livros mais vendidos no Brasil no último ano. Para meu espanto, encontro Orwell e Emily Brontë. Para o espanto de Tolstói, são dois nomes em meio a um mar de lixo. “Está vendo? — digo-lhe sorrindo — a maioria tem horror à verdadeira arte”. Tolstói me não responde, deve estar a refletir sobre as críticas que teceu sobre a música de Wagner…