Que dizer desta Ode marítima? Sem dúvida, a rajada mais potente de uma obra brilhante. Fernando Pessoa, mestre na sutileza poética, na capacidade de deixar no ar o sentido de seus versos, de estimular interpretações ao infinito, de criar um ambiente reflexivo, místico, intrigante e contraditório, de representar com meticulosidade manifestações as mais diversas, faz estourar nessa Ode marítima a sua dimensão mais viva, levando-a ao extremo da euforia. Estruturalmente, uma construção dramática perfeita, uma progressão cujo cume é o êxtase completo e o desfecho retorna ao estado reflexivo inicial, carregando-o de emoção. Tecnicamente, vistosa influência de Walt Whitman, num quase esgotamento de imagens e gatilhos a fim de engendrar com plenitude a atmosfera desejada. O poema cresce e o leitor arrepia, sente-lhe o sangue esquentar, experimenta picos de adrenalina. Extremos fortíssimos, imagens penetrantes em vocábulos que parecem alvoroçados no papel. Quantas obras suscitam parecido? Essa Ode marítima, poema talvez sem par na literatura universal, é a prova de que o gênio Fernando Pessoa está entre os maiores artistas de todos os tempos.
Simbolistas e Augusto dos Anjos
Interessante notar que dois dos três elementos fundamentais do simbolismo segundo a definição de Valéry — stérilité, préciosité —resumem com grande precisão a obra de Augusto dos Anjos. É verdade, diferente de Rimbaud, Verlaine e Baudelaire, a stérilité de Augustos dos Anjos é decorrente de uma morte prematura, e não de um ato voluntário. De qualquer forma, é admitir: a esterilidade acarretou potência, seja nos franceses, seja em Augusto — este, dono talvez das imagens mais fortes jamais registradas em versos portugueses.
Silêncio longo rompe, e na câmara escura…
Silêncio longo rompe, e na câmara escura
Sapatos, calmamente, em direção incerta
Tropeiam percorrendo a lúgubre clausura.Na treva um clique. Súbito, um clarão desperta
Paredes cor de sangue, em febre, ardendo forte,
Qual exprimindo, iradas, agressivo alerta.Roncando acorda um forno, e treme-lhe o suporte;
Sobre a bancada em pedra, imóveis a brilhar
Como em expectativa as lâminas da morte.Meticulosas mãos, em arte singular,
Fazem o aço ranger: o agudo retinente
Ecoa e anuncia: é noite de rasgar!Envolto o teso membro em luva transparente,
Um pano umedecer faz em líquido ignoto;
De amônia escapa odor, contaminando o ambiente.Nas mãos a prava faca, o pano, em mente o voto;
O olhar feroz atira ao âmago, qual seta,
Da câmara em que sobre um leito de aço, imoto,Atado, um ser descansa em dormência completa:
Mordaça em couro sobre o lábio ressequido,
E o torso alvo e nu marcado em tinta preta.A ver se ativa o mais fundamental sentido
E torna interessante a mão à noite cava
Encosta no nariz o pano umedecido.O olhar desperta em três segundos. O urro trava
E perde-se na carne acesa, em alvoroço,
Que presa em firmes nós é convertida escrava!Atado em mãos e pés e cintura e pescoço!
Imóvel! Preso! E o rubro aterrador invade
A mente pela vista, enquanto treme o osso!Ao ventre nu perpassa a rígida acuidade
Como esboçando, lenta, em caprichosos traços,
Terrível e escarlate a fronte da maldade!Deitada a superfície, inúmeros compassos
Esfolam de contínuo, e o pobre ventre fica
Em carne viva! E a mão da pele extrai pedaços…Terror de um lado e doutro o lábio vil estica
O riso do carrasco ante o ser condenado
A abandonar gemendo a terra em males rica!Aguarda a vez, ansioso, um frasco preto ao lado
Das lâminas. Puxado, exala alegre: é química!
Uma só gota em carne e novamente o bradoSelvagem trava! Como em assombrosa mímica,
O abrir dos olhos diz que a carne é causticada,
E queima além da derme a estrutura anímica!Então de uma só vez despeja uma enxurrada
De gotas! E o terror é ver que a mente escuta,
De súbito, romper sonora a gargalhada!A voz diz: “Dói?”, e ri! Perdeu a fé, a luta;
Feneceu o clamor travado na garganta
Do torturado. A mão quer mais! Pois que executaUm ágil movimento e saca um que abrilhanta
Alçado, um canivete. E a ponta, como relha
Insere em topo do anelar. Então levantaA unha aos poucos; força entrada. E vê de esguelha
O sofredor da junta ungueal a resistência
Romper, e o dedo estila a lágrima vermelha…Já quase na falange, e já rota a aderência
Entre unha e carne, a folha, em movimento rude,
Arranca e cospe a unha ao alto com violência!Quer mais a mão! Mais sangue! Avança a inquietude:
Um só não dá! É pouco, é nada! E, pois, repete
Por vezes dezenove idêntica atitude!No chão a queratina, o forte canivete
Insatisfeito para e pensa: “Quero mais!”
Reflete junto a mente hedionda que o submete.Implora o outro a Deus, contudo os infernais
Neurônios, trabalhando, avistam nova luz:
Cutelo, agora! Um dedo é posto, entre os demais,À parte, a mão pressiona a outra então conduz
O cabo ao céu, e chora o dedo, sob pressão
Contra uma tábua. No alto o mau cutelo luz:Decepa! E urra a mente em alucinação!
O sangue jorra! E o barulhento forno incita
Roncando, o dono a ver-lhe a grande agitação!Pela segunda vez a voz perversa grita:
“Escolhe: faca ou forno”; e arranca, num instante,
A peça negra, em couro, e livra a boca aflitaQue estoura, insana, em desespero alucinante
E quer articular, mas rompe, explode a voz
Em uivo! berro! O convulsivo, agonizanteMortal quer suplicar e o singulto feroz
Impede! E grita o olhar, a mente! A alma reclama
Misericórdia emocionada ao frio algoz!A mãe idosa! O filho! A morte não! A cama
Sacode, quando o ser, queimando em febre intensa,
Arfante: “Por favor, senhor!” — implora, exclama:“Por favor! Por favor!” — e lembra em dor imensa
Da mãe, do filho! E diz em desolado pranto:
“Aceito tudo a reverter essa sentença!”E pulsa a culpa! E dói só de pensar em quanto
Hão de sofrer, penar privados do carinho!…
E o monstro assiste a cena em absoluto espanto…Então, como em milagre a mão do ser daninho
Desfalecida, apática, a arma branca larga,
E escolhe enveredar por superior caminho.Atira-lhe a consciência esmagadora carga;
Barbárie acumulada em uma vida inteira…
E o vil torturador verte da boca amarga:“És superior a mim. Miro-te em verdadeira
Misericórdia. Sou terrível, monstruoso.
Nada fizeste a mim. Faço por brincadeira…“Divirto-me da dor humana, sinto gozo
Quando faço sofrer. Mas hoje, aqui, provaste
Que és mui maior que eu. És nobre, virtuoso.“Pois nesta sala a mim exibiste o contraste
Moral entre o poder e a sujeição. Maldito
Sou eu e minha vil vontade. Tu criaste“O que eu sou incapaz: afeto. Necessito
De subjugar a ver em mim qualquer valor…
E tu extrapolaste a ti chorando, admito…”Assim foi libertado o egrégio sofredor
Que carregou pra sempre as marcas da maldade;
Saiu, contudo, agradecido ao malfeitor…Mil mortes, um perdão! Atroz perversidade
Que cede uma só vez, dizer-se acometida
— Que seja uma só vez… — da mais pura bondadeHabilitada está! A mais frouxa investida
A relevar a dor de outrem — uma só! — Mil,
Mil vezes torna o ser melhor do que essa VidaQue dessa tal Misericórdia nunca ouviu!
(este poema está disponível em Versos)
Antagonistas naturais
De um lado, a filosofia da unidade; doutro, a filosofia do acaso. Incompatíveis, antagonistas. E ambas encontram, é verdade, vistosa fundamentação. Privadas, contudo, da certeza, da prova cabal que anularia a argumentação contrária, digladiam-se inutilmente. Como notou Pascal, parece haver no mundo o suficiente para que qualquer um enxergue o que quiser. Dessa forma, a postura filosófica fundamental parece resumir-se no apego ou desapego à incerteza, no apreço aos sinais que podem satisfazer ou não; em suma, na reação do espírito ante o conhecimento adquirido.