Pensando em Tolstói, leio dezenas de páginas de Valéry sobre Mallarmé. Digo: pensando nas severas críticas de Tolstói a este último e seus pares simbolistas. Diz Tolstói que a grande arte deve ser acessível e universal, e portanto artistas obscuros como Mallarmé pervertem e falsificam a arte. Segundo Valéry, Mallarmé foi o responsável por “introduzir na arte a obrigação do esforço de espírito”, e artistas como ele destacam-se por criar valor e beleza do vazio. Que dizer? Lamentavelmente, e o cotidiano só faz corroborar, a sensibilidade artística não foi distribuída de forma universal, como julga Tolstói. O mestre e seus mujiques… Acessível não pode ser critério qualitativo de uma obra artística, do contrário seria subordiná-la ao público. Vale o que diz um analfabeto sobre a qualidade de um livro? O valor de uma obra nada tem que ver com quem a recebe. Bilhões viveram e vivem despegados de qualquer contato com a arte, a maioria das cidades não possui um teatro ou uma orquestra ativa e decente: a arte, hoje, está reduzida ao supérfluo, não é vista senão como entretenimento. Isso, é claro, pela maioria, a mesma maioria cuja ascensão subverteu e praticamente aniquilou a função social real da arte. Uma grande obra artística, potente e sincera, geralmente só é contemplada por um público seleto, porque os demais tampouco se lhe interessam. Perde a arte? É claro que não… Contudo, faz-se necessário expurgar da mente a noção de que o coletivo é o árbitro soberano: a nível individual, a arte continuará sendo o que sempre foi. Em verdade, o saldo é bem positivo. O mundo é melhor quando a grande arte não se entrega a preguiçosos nem serve de passatempo a idiotas.
O risco de não enxergar o óbvio
A mente analítica, conquanto dotada de grande talento em dar profundidade ao objeto analisado, esmiuçá-lo, encontra dificuldades em visualizá-lo em ambiente dinâmico, interligado e em movimento. De um lado, a facilidade em penetrar e captar a essência das coisas; doutro, a dificuldade em visualizar o conjunto. Resumir ou, por outra, delinear superficialmente é o que essa mente recusa, privando a si mesma de uma visão panorâmica e frequentemente esclarecedora. A necessidade de isolar e aprofundar sempre, além de acarretar muito esforço inútil, pode privá-la de enxergar o essencial.
Ode marítima, de Fernando Pessoa
Que dizer desta Ode marítima? Sem dúvida, a rajada mais potente de uma obra brilhante. Fernando Pessoa, mestre na sutileza poética, na capacidade de deixar no ar o sentido de seus versos, de estimular interpretações ao infinito, de criar um ambiente reflexivo, místico, intrigante e contraditório, de representar com meticulosidade manifestações as mais diversas, faz estourar nessa Ode marítima a sua dimensão mais viva, levando-a ao extremo da euforia. Estruturalmente, uma construção dramática perfeita, uma progressão cujo cume é o êxtase completo e o desfecho retorna ao estado reflexivo inicial, carregando-o de emoção. Tecnicamente, vistosa influência de Walt Whitman, num quase esgotamento de imagens e gatilhos a fim de engendrar com plenitude a atmosfera desejada. O poema cresce e o leitor arrepia, sente-lhe o sangue esquentar, experimenta picos de adrenalina. Extremos fortíssimos, imagens penetrantes em vocábulos que parecem alvoroçados no papel. Quantas obras suscitam parecido? Essa Ode marítima, poema talvez sem par na literatura universal, é a prova de que o gênio Fernando Pessoa está entre os maiores artistas de todos os tempos.
Simbolistas e Augusto dos Anjos
Interessante notar que dois dos três elementos fundamentais do simbolismo segundo a definição de Valéry — stérilité, préciosité —resumem com grande precisão a obra de Augusto dos Anjos. É verdade, diferente de Rimbaud, Verlaine e Baudelaire, a stérilité de Augustos dos Anjos é decorrente de uma morte prematura, e não de um ato voluntário. De qualquer forma, é admitir: a esterilidade acarretou potência, seja nos franceses, seja em Augusto — este, dono talvez das imagens mais fortes jamais registradas em versos portugueses.