Todo livro deveria conter uma etiqueta colorida colada à capa

Quando imagino a postura de Cioran diante de um papel e comparo-a com a de alguns artífices do entretenimento consagrados como best-sellers, penso que todo livro deveria conter uma etiqueta colorida colada à capa a indicar se a obra é séria ou trata-se de diversão, passatempo, brincadeira — talvez uma carinha feliz cumpriria bem o papel para estas. A sinceridade é dotada de um potencial agressivo que ao marketing convém evitar a todo custo. Quem é que paga para ser agredido? Certamente não o público mainstream. E, no mais, a classificação seria útil para que o leitor soubesse de quem poderia pedir qualquer satisfação, a quem seria visto como cliente e, portanto, quem estaria verdadeiramente interessado em sua satisfação. Proveitoso e facílimo seria identificar quem publica pela fama e quem risca o papel percebendo-se a sangrar.

Utilitarismo

Era violinista. Desde pequeno, apaixonado pela música. O primeiro violino foi dado a Dutra pelo pai aos sete anos de idade; o menino, eternamente encantado, jamais o largou. Na escola, foi um recluso; de perfil introvertido, detestava esportes. Seu único amigo era Fábio que, devido à influência do pequeno músico, passou a interessar-se também pela arte sonora, escolhendo como seu instrumento o teclado.

Oito anos depois, a amizade perdurava, o teclado tornou-se um piano e os amigos conheceram outros músicos. Visualmente, ambos pareciam bons eremitas. Da mesa de um bar, vez ou outra sujeitos atiravam-lhes comentários do tipo: “Esses aí nunca beijaram na boca”. E passavam os dias assim, num círculo social isolado, o que era bastante natural, uma vez que a música clássica, ao brasileiro comum, não passa de um inseto excêntrico.

Construíram os amigos, a partir dos vinte anos, o hábito de se reunirem, aos sábados, para exercitar a arte. A banda era composta de outro violino e um violoncelo. Aquele era, para todos, o momento mais prazeroso da semana. Um deles, de boa condição financeira, dedicava-se em tempo integral aos estudos: cursava música e aprofundava-se progressivamente no seu instrumento, o violoncelo, tratando de palestrar teoria e estimular os demais, que desperdiçavam seus dias correndo qual ratos atrás de dinheiro. Vez ou outra iam então à Orquestra Filarmônica, o alento da arte em Belo Horizonte, e saiam sempre encantados, profundamente impressionados e motivados a suportar outra semana de trabalho. A verdade é que todos sonhavam viver de música, conquanto jamais conseguiram.

Dutra, por exemplo, quando contava vinte e oito anos, trabalhava em uma empresa de telecomunicações. Entrara aos dezoito como estagiário e subira de cargo aos vinte, tornando-se técnico em eletrônica, função que mantinha. Nesta época, todos os amigos continuavam da mesma forma: cada qual exercendo uma função totalmente alheia à música durante o dia, exceto João, que prosseguira em seus estudos e vivia da renda dos pais. Ainda assim, mantinham as reuniões semanais, que raramente falhavam.

Oportunidade

Numa sexta-feira, o chefe de Dutra o chamou à sua sala. Eram amigos. Sentaram-se, e Rui atirou ao subalterno: a unidade da empresa em São Paulo precisava de um gerente, e ele gostaria de indicar Dutra como agradecimento pelos serviços prestados. O novo ordenado seria duas vezes e meia maior. Quase estourando de alegria, Dutra sentiu vontade de beijar o chefe. Conteve-se, e convocou os amigos da banda a comemorar — em linguagem mineira, entupir-se de cerveja.

Saindo do trabalho, foi direto a um bar que apreciava. Chegaram João e Fábio, Paulo viajava. Dutra anunciou-lhes a boa-nova. Os amigos felicitaram-no.

— Em São Paulo? — perguntou Fábio, atinando finalmente.

— Pois é, ganharei três vezes mais.

A amizade de ambos contava quinze anos.

— E como fica a banda?

A banda contava oito.

— Que é isso, Binho. Vou ganhar o triplo! — tentou justificar Dutra.

Calaram-se. Rebentou a patente decepção. Para eles, só a música justificava a vida; o resto sempre foi questão de sobrevivência. Trabalhavam para poder tocar ao sábado, estudavam para que não faltasse trabalho.

A comemoração, sumariamente, foi triste. Houve choro de todas as partes, não dizendo Fábio e João palavra de censura ao amigo, que levou quase uma década construindo-lhe a carreira profissional. Entretanto, no final da noite, Dutra solicitou-lhes a opinião:

— Eu ainda não aceitei. Mas não posso recusar… é pra mudar definitivamente o meu padrão de vida — articulou.

Quando Fábio admoestou-o pela primeira vez:

— Olha, Dutra: eu seria um pouco menos utilitário, porque… bom… porque utilitariamente o homem nasce pra morrer.

Os amigos olharam-se em profundo dissabor.

Decisão e consequência

Dutra aceitou a proposta. Quinze anos depois, já não havia banda. Com Fábio, manteve o contato frequente — conquanto arrefecido pela distância — conversando semanalmente através de mensagens ou ligações. Fábio casara-se, ocasião única em que Dutra voltou a Belo Horizonte durante todo esse tempo; de resto, trabalhava feito um cão. Paulo, o outro violinista, morrera junto da família num acidente de trânsito; a ocasião foi plangente, mas Dutra não pôde comparecer ao velório, posto estivesse em viagem a trabalho. João ainda tocava, sozinho, nunca conseguindo efetivar carreira como músico; permaneceu solteiro.

Tragédia

Era uma quarta-feira nublada em São Paulo. Fazia muito frio desde o início da semana. Dutra, após uma jornada estressante, finda em duas horas de congestionamento no trânsito, chegou em casa e sentiu o telefone vibrar. Era João, com quem não falava há três anos. De pé, mirando a cidade pela janela, atendeu:

— Quanto tempo, meu amigo!

E sussurrando, em voz monótona, João levou trinta segundos para anunciar-lhe: Fábio, na manhã daquele dia, falecera, vítima de latrocínio. O assaltante levara-lhe o celular, o carro, e cravara-lhe no peito três balas letais. Dutra havia conversado com o amigo na véspera. Lívido, de olhos esbugalhados, via a fumaça que pairava sobre os prédios. Esqueceu-se de despedir; sentiu o celular deslizar-lhe sobre os dedos e chocar-se contra o chão.

Reflexos

O velório seria no dia ulterior. Trinta minutos após a notícia, Dutra teve, pela primeira vez na vida, resolução quanto ao seu destino. Ligou ao chefe e pediu, não a licença, mas a demissão da empresa. Partiu a Belo Horizonte com a roupa do corpo e a obsessão: “Meu melhor amigo morreu”.

Durante o trajeto, desligou o celular. Não disse palavra por horas. No táxi, de casa ao aeroporto, pôs-se a reparar as ruas, as construções, e percebeu como a cidade era feia. Via os prédios, quadrados, que pareciam blocos cinzentos empilhados, sujos, vários deles chapiscados, cingidos de cercas, arames farpados, ornados por vândalos e marqueteiros achavascados. “Tudo isso é horroroso!” — pensava, enquanto reparava o estrago visual que fazia o emaranhado de fios que pendia dos postes.

Em Belo Horizonte, continuava a observar, do aeroporto de Confins à cidade, as favelas que marginavam a via, com muros mal-acabados, sem pintura, erguidos visando exclusivamente a praticidade e baixo custo; ruelas de terra, roupas pendidas à vista, telhados metálicos que lhes pareciam jogados nos lugares. “Isso é o utilitarismo consumado” — concluiu.

Velório

O velório do amigo foi o dia mais triste da vida de Dutra. A imagem do pianista com as mãos sobre o peito perfurado jamais lhe saiu da memória. A face alva e pálida de Fábio era a representação do que para ele ficou sendo a partir de então o sentido da vida. Três balas no peito por um celular e um carro: foi esse o fim do músico e eterno amigo. Frente ao cadáver, chorou alto, de joelhos, vicejando a dor que lhe marcara a alma para sempre.

“O útil desagrada à vista. Só o fútil embeleza a vida. Utilitariamente o homem nasce para morrer” — foi o que pediu para inscreverem na lápide da sepultura. Não na de Fábio; na própria.

(Este conto está disponível em Casos)

Aflição e revolta

Aflição e revolta: assim parece manifestar-se o espírito ao contrapor a sensação terminante de não pertencimento à necessidade obrigatória de pertencer a alguma coisa. Destacar-se do todo é uma impossibilidade, ainda que lhe esteja claríssimo o caráter incompatível da natureza — é preciso ser parte integrante, é preciso trabalhar por uma conciliação impossível! E assim o existir parece sempre redundar em conflito, em guerra aberta que não estimula senão sentimentos negativos. Entrada obrigatória, saída somente em fraqueza ou submissão. Deixar de falar é facílimo diante de fechar os olhos, domar as veias e anular as rajadas da mente…

Renúncias e apostasias

Curioso notar a postura daqueles a quem eu poderia chamar de modelos em prosa. Nietzsche, com os anos, renegou-lhe o mestre com violência ímpar. Cioran, ainda que alternando explosões e lamentos, fez parecido com quem se lhe referia como o seu “modelo”. Parece um curso natural da vida lentamente se despegar dos antigos preceitos, das antigas admirações e daquilo que um dia moldou e alimentou um espírito em expansão. Disse Cioran na vida importar somente os rompimentos. Talvez porque rompimentos costumam configurar atos de coragem. Renúncias, apostasias, afastamento gradual e definitivo: tudo isso parece, se olhado em distância, contribuir para uma espécie de liberação.