Dinheiro fácil!

Forçado pelas circunstâncias, vou atrás de alguns trabalhos de tradução: liberdade quanto à carga horária, retorno razoável… Engordo-me o currículo: vasta experiência na indústria, conhecimento em variadas línguas, etc. etc. Enviam-me de teste, da terra de Shakespeare, o manual de um modestíssimo ar-condicionado portátil. Olho ao bicho e quase rio. Do inglês ao português é barbada! Verto mil palavras por semana há anos… E que dizer da máquina doméstica? Tenho um diploma que me permite projetar caldeiras, vasos de pressão, elevadores de carga, fornos industriais, estufas, motores a combustão, guindastes… e já sei que não vou levar quinze minutos para verter as banalíssimas quinhentas palavras e garantir a minha nova fonte de renda. Leio Shakespeare, Blake, Walt Whitman… Dinheiro fácil! E então me ponho a trabalhar; em trinta minutos, o resultado pronto e revisto. Envio, por e-mail, à empresa contratante. No dia seguinte, a resposta: tradução rejeitada! “We are so sorry, sir. You did not pass the test this time.”

Forçado pelas circunstâncias

É incrível como tortura sentir-se forçado pelas circunstâncias a aplicar o próprio esforço em algo que não entrega mais do que dinheiro. Aplicar o próprio esforço, e quase sempre o grosso do próprio tempo… Enxergo o artista médio desesperado diante da questão que aparenta insolúvel: como não ser útil aos outros seres humanos ou, ao menos, como não ser escandalosamente útil, estritamente útil, e continuar sobrevivendo? Como não resumir a própria vida num rasteiro utilitarismo? Como ser um artista, e não um gerente comercial, um projetista, um vendedor? Como ser um artista e, no mínimo, abster-se de qualquer necessidade financeira na produção da própria obra? Parece o supremo mérito resumir-se em ter sorte…

O pagode infame

Paga-te cá bum contigo
Pátria que pá dum doído
Tapa te tacou teu filho
Tapa que tapou teu grito

Gabas-te qu’aqui tá tudo dum
Primor tá tudo tudo bom?
Data cá — tudo tudo bom? —
Pátria pá do vudu cupom

Quando em que data te o pudor
Sumiu da lata e te cegou?

Boteco fecha-te o do tapa
Que tapou-te o grito
— O tapa que talou-te o brio —

O eco que escapou emancipado
Te pagou-lhe infindo
Escárnio qu’escapou
Do Tejo ao teu telecoteco

Cala ingrata que toldou-te o brilho
Empaca-te o tambor teu filho
Em tapa te tratou aceita e

Paga-te cá bum contigo
Pátria que pá dum doído
Tapa te tacou teu filho
Tapa que tapou teu grito pá!

(Este poema está disponível em Versos)

A substância da vida é o tempo

A substância da vida é o tempo: viver não é senão lhe definir a aplicação, em escala menor, durante o espaço de vinte e quatro horas e, em escala maior, durante o intervalo indefinido de uma vida — e eu não passo de um homem-planilhas! De qualquer forma, a decisão imediata é sempre a mais importante e o planejamento, quanto mais tardio, tanto menos proveitoso. A verdade é que a distribuição do tempo envolve, em primeira instância, a capacidade de visualizar o resultado desejado que, não bastasse incerto, tem de se adequar às necessidades primárias e os anseios da consumação de algo que justifique o próprio existir. Geralmente, são esferas conflitantes e, geralmente, a primeira acaba sugando o grosso da substância vital. Conhecêssemos, ao menos, a circunstância do último suspiro e não houvesse tamanha indefinição quanto ao horizonte, tudo seria mais fácil: distribuir o tempo seria tarefa quase agradável e os frutos de uma vida seriam muito mais meritocráticos. Entretanto, a trama perderia em emoção e suspense. Parece dificílimo viver e não pecar, de um lado, por precipitação e, de outro, por covardia.