O artista verde-amarelo

Estou pensando, ainda, na acessibilidade da arte, na sua função social e em todo o mais. Inevitavelmente penso em meu país. Fosse julgar pelo caráter miserável, pela nulidade de seus efeitos na massa e pelo desrespeito com que são tratados os artistas nacionais, eu teria de concluir que o país onde nasci só produz artistas medíocres. Isso, é claro, se eu considerasse o senso comum como parâmetro: o normal, aqui, é viver despegado da arte. Se alguém disser, no Brasil: “Sou artista”, pode-se indagá-lo em sequência: “E qual a sua profissão?”. O artista, então, terá de admitir que faz alguns bicos para pagar as contas, ou trabalha fichado num emprego que detesta. Por quê? Porque, como artista verde-amarelo, carrega nas costas a pecha de supérfluo, inútil, ocioso, ao mesmo tempo que recebe miseravelmente mal. O artista, no Brasil, tem de ser artista e motorista de Uber, artista e vendedor de cosméticos. Nelson Rodrigues, um artista de sucesso notável, trabalhou como jornalista até a véspera da morte. Contraponho-me à noção de “arte acessível” amparado pela realidade: a grande arte, necessariamente, vai na contramão da maioria, porque a maioria enxerga a arte como inútil, desgosta do pensamento e louva o agradável. Engraçado… Penso novamente em Tolstói. Um gênio, progenitor de uma obra magnífica, e disse que a verdadeira arte deve ser “acessível” e universal. Já notaram na Rússia que a obra inteira de Tolstói não possui um único momento que suscita o sorriso ou a vontade de rir. Pode ser a passagem do tempo, mas coloco a pergunta: quantos hoje compreendem, ou pelo menos se interessam e leem Tolstói? No Brasil, é certo que sua obra inteira não aliviaria um artista da necessidade de entregar pizzas em meio período…

Deve a grande arte ser acessível?

Pensando em Tolstói, leio dezenas de páginas de Valéry sobre Mallarmé. Digo: pensando nas severas críticas de Tolstói a este último e seus pares simbolistas. Diz Tolstói que a grande arte deve ser acessível e universal, e portanto artistas obscuros como Mallarmé pervertem e falsificam a arte. Segundo Valéry, Mallarmé foi o responsável por “introduzir na arte a obrigação do esforço de espírito”, e artistas como ele destacam-se por criar valor e beleza do vazio. Que dizer? Lamentavelmente, e o cotidiano só faz corroborar, a sensibilidade artística não foi distribuída de forma universal, como julga Tolstói. O mestre e seus mujiques… Acessível não pode ser critério qualitativo de uma obra artística, do contrário seria subordiná-la ao público. Vale o que diz um analfabeto sobre a qualidade de um livro? O valor de uma obra nada tem que ver com quem a recebe. Bilhões viveram e vivem despegados de qualquer contato com a arte, a maioria das cidades não possui um teatro ou uma orquestra ativa e decente: a arte, hoje, está reduzida ao supérfluo, não é vista senão como entretenimento. Isso, é claro, pela maioria, a mesma maioria cuja ascensão subverteu e praticamente aniquilou a função social real da arte. Uma grande obra artística, potente e sincera, geralmente só é contemplada por um público seleto, porque os demais tampouco se lhe interessam. Perde a arte? É claro que não… Contudo, faz-se necessário expurgar da mente a noção de que o coletivo é o árbitro soberano: a nível individual, a arte continuará sendo o que sempre foi. Em verdade, o saldo é bem positivo. O mundo é melhor quando a grande arte não se entrega a preguiçosos nem serve de passatempo a idiotas.

O risco de não enxergar o óbvio

A mente analítica, conquanto dotada de grande talento em dar profundidade ao objeto analisado, esmiuçá-lo, encontra dificuldades em visualizá-lo em ambiente dinâmico, interligado e em movimento. De um lado, a facilidade em penetrar e captar a essência das coisas; doutro, a dificuldade em visualizar o conjunto. Resumir ou, por outra, delinear superficialmente é o que essa mente recusa, privando a si mesma de uma visão panorâmica e frequentemente esclarecedora. A necessidade de isolar e aprofundar sempre, além de acarretar muito esforço inútil, pode privá-la de enxergar o essencial.

Ode marítima, de Fernando Pessoa

Que dizer desta Ode marítima? Sem dúvida, a rajada mais potente de uma obra brilhante. Fernando Pessoa, mestre na sutileza poética, na capacidade de deixar no ar o sentido de seus versos, de estimular interpretações ao infinito, de criar um ambiente reflexivo, místico, intrigante e contraditório, de representar com meticulosidade manifestações as mais diversas, faz estourar nessa Ode marítima a sua dimensão mais viva, levando-a ao extremo da euforia. Estruturalmente, uma construção dramática perfeita, uma progressão cujo cume é o êxtase completo e o desfecho retorna ao estado reflexivo inicial, carregando-o de emoção. Tecnicamente, vistosa influência de Walt Whitman, num quase esgotamento de imagens e gatilhos a fim de engendrar com plenitude a atmosfera desejada. O poema cresce e o leitor arrepia, sente-lhe o sangue esquentar, experimenta picos de adrenalina. Extremos fortíssimos, imagens penetrantes em vocábulos que parecem alvoroçados no papel. Quantas obras suscitam parecido? Essa Ode marítima, poema talvez sem par na literatura universal, é a prova de que o gênio Fernando Pessoa está entre os maiores artistas de todos os tempos.