Calcar a motivação na esperança de um pagamento certo é postura infantil

Os ortodoxos taxam de mercenário aquele que crê na esperança da recompensa eterna. Quanto à vida prática, não passa de um erro grosseiro acreditar em qualquer sorte de meritocracia operante, quando em termos práticos a própria existência encerra uma vistosa injustiça. Calcar a motivação na esperança de um pagamento certo é postura infantil, frágil, senão indutora da vaidade. Trabalhar diariamente, com afinco, a despeito do futuro: eis a distinção daquele que se eleva acima de uma relação comercial.

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O que é a arte?, de Liev Tolstói

Ensaio interessantíssimo, como sempre, tratando-se desta pena. A Tolstói, a obra de arte é um meio de transmissão de sentimentos, quer dizer: independente do caráter qualitativo do sentimento expresso, — que pode ser bom, mau, forte, fraco… — a obra artística cumpre o seu papel desde que este sentimento comunicado pelo artista seja experimentado por quem entre em contato com ela. E o mestre, sem evasivas, leva a cabo as consequências desta proposição, julgando as variadas teorias estéticas ao longo do tempo e citando inúmeros artistas como exemplo da grande, da péssima, da verdadeira e da falsa arte. Essencialmente, diz ele, a arte não é uma busca pela “beleza”, — nem nenhuma outra abstração, —mas um instrumento que possibilita ao artista a transmissão daquilo que extrapola o argumento racional, a transmissão de sentimentos pessoais experimentados pelo autor. A arte, assim, estabelece um elo entre o artista e o homem comum, justificando-se o papel nobilíssimo na sociedade uma vez que permite que qualquer um tenha experiências que não seriam possíveis por nenhum outro meio. Tolstói julga, também, a arte de seu tempo majoritariamente corrompida e arrisca alguns comentários quanto à “arte do futuro”. O ensaio data de 1898, o mestre faleceu em 1910: poupou-se de presenciar, pois, quão desgraçadamente cairiam por terra todas as suas previsões…

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Corrupta configuração, decerto…

Corrupta configuração, decerto…
Enseada a toda espécie de assassino,
Que assusta quando, à luz de indício incerto,
Parece, em brando olhar, sorrir ao tino…

E o juízo a um pé de ter-se categórico
Lhe vê que a fixação nos quintos míngua,
Em objeção enxerga um não pictórico,
Absurdo a replicar na própria língua…

Vai, pois, Mistério, exibe-te a virtude,
Faz colapsar o raciocínio fraco,
Faz o que bem quiseres, vai, ilude…

Torna a asserção humana vão pitaco,
Causa total na empáfia um desmantelo,
Mostra e rebuça, a ti subjuga o belo…

(Este poema está disponível em Versos)

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A construção de um monumento lógico

Sorrio percebendo-me a repugnância por sistemas filosóficos. A construção de um monumento lógico; o enquadramento da realidade, em todas as suas infinitas nuances, numa sistemática racional: nada disso desperta-me o interesse, tudo isso parece-me proveniente de um erro primário. A construção de um sistema filosófico exige a mutilação da realidade: sua aplicabilidade no mundo real, na vida prática, pois, é quase nula. Que sobra além do sistema? Há algo capaz de impactar uma conduta, alterar uma relação entre indivíduo e meio, moldar uma postura real? É o que me pergunto ao julgar a obra de um filósofo, e sorrio ao ver-me a incapacidade de embarcar no delírio e reputar como maravilhoso aquilo aplicável somente no mundo das abstrações. A filosofia que se preze deve ser capaz de enxergar a cadeia, o hospício, o mosteiro e a casa de prostituição.

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