É necessário a vocação da liberdade para reconhecer-se um escravo

Em primeiro plano, o mundo prático; depois, o próprio pensamento. Amarras, grilhões por todas as partes. Um campo de ação limitadíssimo e um papel a cumprir, por necessidade. Onde quer que o raciocínio direcione-lhe as lentes, lá estão as garras da conveniência. E nada disso assusta, tudo isso não constitui senão a normalidade. Uns poucos — loucos — porém despertam. Manifestam-se pela revolta. A eles, pela blasfêmia, toda a ferocidade com que um animal reage quando sente-se ameaçado. E resta a revolta, portanto, desaconselhada — para aqueles que seguem conselhos. Já aos poucos, a felicidade de saberem não ser a maioria. Como disse Fernando Savater, é necessário a vocação da liberdade para reconhecer-se um escravo.

Estoicismo aplicado à inteligência emocional

A partir do momento em que empresários, ou seja, homens do dinheiro, ou seja, homens que dedicam a vida a crescer financeiramente, expandir negócios, conquistar mercados e todo o resto, a partir do momento em que esses homens fazem discursos citando Marco Aurélio e Sêneca ou, como eles dizem, os “estoicos”, então o melhor é queimar de uma vez todos os livros, porque eles são inúteis e nada ensinam. O marketing talvez seja a mais odiosa das ciências por não ter escrúpulos, por apropriar-se de tudo quanto se apresenta útil para vender. Num bom dicionário, haveria de ser descrito como a arte da mentira. Ver aberrações conceituais como “estoicismo aplicado à inteligência emocional” é algo que poderia conduzir à indignação ou desespero. Não conduz, porém, desde que o mundo passe a ser encarado como é: um circo ridículo e infame.

O panorama moderno de degradação cultural

Não há como deixar de enxergar o panorama de degradação cultural em que a sociedade moderna se afundou. Juntamente da ascensão da maioria, em plano superior colocadas suas preferências. O resultado? A alta cultura desprezada, reduzida ao supérfluo. Preceitos comportamentais ditados por uma psicologia de massa infame: todos, obrigatoriamente, a partilhar gostos e hábitos, sob ameaça de punição. E se o acesso foi, como nunca, facilitado, a facilidade redundou em perda de interesse pelo antes raro, em perda de valor. Que fazer, enxergando esse cenário? Contra as imposições da força numérica, nada há de possível: a escala de valores conjunta escapa ao campo de ação do indivíduo. Mas esta é desprezível como tudo o que provém de qualquer maioria. Resta forçoso, porém, uma reação cultural com violência sem precedentes.

A arte séria não entrega prazer ao artista

A arte séria não entrega prazer ao artista. Dizê-lo é repetir o óbvio… Kafka é o modelo de artista sério: Kafka, o escritor que queimava quase tudo o que escrevia e que viveu como um completo anônimo. Que lhe deu a arte? Nada, senão aflição. Quem julga a arte entregar qualquer tipo contentamento desconhece-a por completo. O artista esforça-se por dezenas de horas: cria a obra. E então, que faz? ou ainda: de que lhe serve a obra? De início, a arte séria não vende — e é um insulto pensar que seja feita para vender; — depois, é uma piada imaginar alguém como Kafka satisfeito ou contente ao vislumbrar o que pariu. Kafka certamente relia as suas obras, e é por isso que as queimava. Uma obra séria, posto criada, repugna ao artista; uma vez criada, tem de desaparecer de seu campo de visão. De resto, aí está o que a arte entrega: infinitas horas de amargura, e um juízo final desgostoso. Como Kafka, é deixar inédito o trabalho de uma vida e ordenar em testamento: “Queime tudo o que sobrar de mim!”.