Há fases muito distintas no aprendizado de um idioma. Antes disso, há objetivos distintos. Pode-se aprender uma língua para ser apto a pedir um café num aeroporto internacional. Pode-se, em contrapartida, aprender uma língua para ser capaz de ler e compreender sua mais alta manifestação, isto é, sua literatura. Neste último caso, há etapas bem definidas, de extensões variadas, e de diferentes perfis de assimilação. A primeira e essencial etapa para aprender qualquer idioma é ouvi-lo, para ser possível sentir-lhe a fonética. Essa etapa envolve replicar os fonemas na própria boca, para ser possível reproduzi-los em mente no ato da leitura. Aqui, é muito válido desconhecer a representação gráfica do que se fala, a evitar que o cérebro atrapalhe o aprendizado. Aqui, também, encontra-se prazer quando se vence as pequenas dificuldades iniciais de assimilação dos fonemas inéditos e das novas palavras. Em seguida, a próxima fase, que consiste no contato com a escrita. Já conhecendo o som e significado de muitas palavras, é descobrir como elas são grafadas e avançar para outras particularidades do idioma. Uma dificuldade que, de início, parece grande, é rapidamente vencida com algumas semanas de contato com textos e, após a assimilação de um pequeno número de palavras, é possível pular para a próxima etapa. Sendo mais preciso: o domínio dos principais verbos, geralmente irregulares (ser, haver, estar), somados de um verbo de cada declinação regular do idioma (obviamente, dominando-lhes as desinências pessoais e temporais) e dos principais pronomes (pessoais, demonstrativos, possessivos, interrogativos e relativos) — com isso, é possível forçar uma entrada em textos de pequena complexidade linguística, isto é, textos jornalísticos, científicos, filosóficos e similares. Nesta nova etapa, também, uma dificuldade inicial aparentemente grande é rapidamente superada com algumas semanas de contato com os textos e assimilação de novas palavras. Quando a leitura começa a fluir e, consequentemente, entregar prazer; quando o cérebro ingênuo começa a crer que o idioma é simplíssimo e nada desafiador, então é hora de passar para a próxima etapa, a mais terrível, frustrante e morosa, a etapa que os poliglotas de aeroporto nem sonham existir e que consiste, basicamente, na transição para os textos literários. É incrível como o castelinho de areia desaba de uma só vez. Os períodos, que antes conectavam-se como por mágica, passam a apresentar-se impenetráveis. O prazer da leitura não só desaparece, como se transforma em aflição e desgaste. A cada linha, uma consulta ao dicionário, e por conseguinte o fio da narrativa perde-se, uma vez após a outra, tornando impossível a assimilação de parágrafos. Nesta etapa, se o estudante opta pela compreensão do texto, provavelmente acabará por jogar a toalha. Se, por outro lado, avança mesmo que não entenda perfeitamente o que lê, se obriga o cérebro a prosseguir pelo imperscrutável, impondo ritmo na incompreensão, então força-o a assimilar alguma coisa. Se prossegue por muitas dezenas de horas, lendo e relendo, sempre forçando o fluir da leitura, ainda que julgue a atividade estúpida e improfícua, então presencia a magia do aprendizado. O cérebro, chicoteado, transforma as minúsculas assimilações individuais numa pilha gigante que, em conjunto, após muitas horas de angústia, possibilita-o a compreensão do idioma num nível em que mesmo os nativos por vezes são incapazes. Então poderá orgulhar-se e dizer: “Eu aprendi”.
Incompatibilidades entre mentes superiores
É curioso notar algumas incompatibilidades entre mentes superiores. Parece haver um elemento obscuro que, em alguns casos, força-lhes a repulsão. Digo isso pensando em Pessoa e Nietzsche, ou melhor, em Pessoa para com Nietzsche. O português referiu-se ao alemão como um asceta louco admirador da força e do domínio. Noutras notas, a menção a Nietzsche vem quase sempre carregada de um tom pejorativo. O curioso é o seguinte: como artistas, há entre ambos muito em comum. No breve ensaio intitulado Apontamentos para uma Estética não aristotélica, Pessoa defende uma estética assentada na força, uma estética onde o grau supremo de expressão atinge-se pela potência máxima, uma estética em que o artista “force os outros, queiram eles ou não, a sentir o que ele sentiu, que os domine pela força inexplicável, como o atleta mais forte domina o mais fraco, como o ditador espontâneo subjuga o povo todo (porque é ele todo sintetizado e por isso mais forte que ele todo somado), como o fundador de religiões converte dogmática e absurdamente as almas alheias na substância de uma doutrina que, no fundo, não é senão ele próprio”. Nietzsche, um símbolo da força de expressão, progenitor de uma obra onde as exclamações saltam das folhas como foguetes, dizia que “a grandeza de um artista mede-se segundo a intensidade empregada para atingir o grande estilo”. É um belo resumo da teoria estética de Pessoa. Mas, ainda assim, incompatíveis…
Pelo raciocínio não se chega à verdade de nenhuma espécie
Se entendemos o alcance da verdade como a revelação de um mistério, teremos de concluir que pelo raciocínio não se chega à verdade de nenhuma espécie. Mistério diz-se do que escapa à compreensão humana, portanto não se raciocina diante do Mistério. Diante dele reza-se, roga-se por auxílio superior, porquanto a admissão de sua existência é a confissão do fracasso racional na tentativa de apreendê-lo.
Convicções profundas, só as têm as criaturas superficiais
Hoje, vamos destes excertos de Fernando Pessoa:
Se há fato estranho e inexplicável é que uma criatura de inteligência e sensibilidade se mantenha sempre sentada sobre a mesma opinião, sempre coerente consigo própria. A contínua transformação de tudo dá-se também no nosso corpo, e dá-se no nosso cérebro consequentemente. (…) Ser coerente é uma doença, um atavismo, talvez; data de antepassados animais em cujo estádio de evolução tal desgraça seria natural.
A coerência, a convicção, a certeza, são além disso demonstrações evidentes — quantas vezes escusadas — de falta de educação. (…)
Convicções profundas, só as têm as criaturas superficiais.