O excepcional deste mundo é que a aparência de monotonia mescla-se a transformações visíveis e radicais. A impossibilidade do absoluto, conquanto evidente, camufla-se na falsa morosidade do tempo. A percepção vê-se, sempre, envolta num dilema: incapaz de formular projeções razoáveis, de interpretar precisamente a realidade, ainda assim carece do juízo e opta pelo erro. Tudo em movimento, tudo suscetível a golpes abruptos intempestivamente: a saúde a um triz da doença, a carência da abundância, a apatia da agitação. E o futuro, estranho à lógica, jamais deixando de ceder palco à contingência.
Grande senhor do espaço sideral…
Grande senhor do espaço sideral,
Devorador são d’almo comprimido,
Exímio, racional, desenvolvido,
Mentor da realidade virtual!Parido de útero antinatural,
Prova que o acme humano fora obtido,
Inteligente, hab’líssimo e polido,
Produto da ciência neuronal!Tu, que és da eficiência a suma imagem,
E bem-cuidado estampas-te no rosto,
Terás o que quiser, menos: coragem!Tu mesmo, cidadão sofisticado:
Saibas que és a razão do meu desgosto!
Saibas que te contemplo envergonhado!
(Este poema está disponível em Versos)
A gratidão é um exercício nobre
Lembro-me do dia em que decidi iniciar estas notas. Como todas as decisões importantes, essa veio-me como uma rajada, tomando-me a mente e forçando a ação imediata. No instante seguinte, a reflexão sobre o que escrever. O consenso: começar pelos agradecimentos. Então escrevi sobre Nelson, Dostoiévski, Swift, Pondé e alguns outros, e não tardou uma semana da decisão à publicação das primeiras notas. Pois bem. Ao iniciado, não vejo postura razoável que não seja a de humildade; é necessário prestar contas àqueles que contribuíram, de alguma forma, à sua iniciação. A gratidão é um exercício nobre e proveitoso, o reconhecimento é uma exigência do caráter. Digo isso para concluir: a faculdade do agradecimento parece-me um belo parâmetro para distinguir aquele que, por esforço voluntário, empenha-se para ser maior do que a própria vaidade.
O vocábulo latrocínio
Procurei, em inglês e francês, a tradução do vocábulo latrocínio. Não encontrei. Curioso, porque acabei entrando numa reflexão linguística. Passam os anos, e os dicionários alargam-se por uma necessidade natural de expressão em todos os idiomas. Novas formas, novas variantes e, também, novas palavras, a teoricamente agregar precisão e fluidez ao discurso, possibilitando que seja melhor expressa a ideia, ou expresso aquilo que antes não era passível de expressão. Latrocínio: a mim vocábulo rotineiro; ao francês e ao inglês, inexistente. Saio à rua e penso: quando o último caso? Olho, naturalmente, aos dois lados, para frente e para trás, então continuo a pensar. Está muito claro: esta única palavra esconde um universo literário só representável na variante brasileira do português.