Aflição e revolta: assim parece manifestar-se o espírito ao contrapor a sensação terminante de não pertencimento à necessidade obrigatória de pertencer a alguma coisa. Destacar-se do todo é uma impossibilidade, ainda que lhe esteja claríssimo o caráter incompatível da natureza — é preciso ser parte integrante, é preciso trabalhar por uma conciliação impossível! E assim o existir parece sempre redundar em conflito, em guerra aberta que não estimula senão sentimentos negativos. Entrada obrigatória, saída somente em fraqueza ou submissão. Deixar de falar é facílimo diante de fechar os olhos, domar as veias e anular as rajadas da mente…
Renúncias e apostasias
Curioso notar a postura daqueles a quem eu poderia chamar de modelos em prosa. Nietzsche, com os anos, renegou-lhe o mestre com violência ímpar. Cioran, ainda que alternando explosões e lamentos, fez parecido com quem se lhe referia como o seu “modelo”. Parece um curso natural da vida lentamente se despegar dos antigos preceitos, das antigas admirações e daquilo que um dia moldou e alimentou um espírito em expansão. Disse Cioran na vida importar somente os rompimentos. Talvez porque rompimentos costumam configurar atos de coragem. Renúncias, apostasias, afastamento gradual e definitivo: tudo isso parece, se olhado em distância, contribuir para uma espécie de liberação.
Dinheiro fácil!
Forçado pelas circunstâncias, vou atrás de alguns trabalhos de tradução: liberdade quanto à carga horária, retorno razoável… Engordo-me o currículo: vasta experiência na indústria, conhecimento em variadas línguas, etc. etc. Enviam-me de teste, da terra de Shakespeare, o manual de um modestíssimo ar-condicionado portátil. Olho ao bicho e quase rio. Do inglês ao português é barbada! Verto mil palavras por semana há anos… E que dizer da máquina doméstica? Tenho um diploma que me permite projetar caldeiras, vasos de pressão, elevadores de carga, fornos industriais, estufas, motores a combustão, guindastes… e já sei que não vou levar quinze minutos para verter as banalíssimas quinhentas palavras e garantir a minha nova fonte de renda. Leio Shakespeare, Blake, Walt Whitman… Dinheiro fácil! E então me ponho a trabalhar; em trinta minutos, o resultado pronto e revisto. Envio, por e-mail, à empresa contratante. No dia seguinte, a resposta: tradução rejeitada! “We are so sorry, sir. You did not pass the test this time.”
Forçado pelas circunstâncias
É incrível como tortura sentir-se forçado pelas circunstâncias a aplicar o próprio esforço em algo que não entrega mais do que dinheiro. Aplicar o próprio esforço, e quase sempre o grosso do próprio tempo… Enxergo o artista médio desesperado diante da questão que aparenta insolúvel: como não ser útil aos outros seres humanos ou, ao menos, como não ser escandalosamente útil, estritamente útil, e continuar sobrevivendo? Como não resumir a própria vida num rasteiro utilitarismo? Como ser um artista, e não um gerente comercial, um projetista, um vendedor? Como ser um artista e, no mínimo, abster-se de qualquer necessidade financeira na produção da própria obra? Parece o supremo mérito resumir-se em ter sorte…