Fraga e sombra, de Carlos Drummond de Andrade

Um soneto de Drummond:

A sombra azul da tarde nos confrange.
Baixa, severa, a luz crepuscular.
Um sino toca, e não saber quem tange
é como se este som nascesse do ar.

Música breve, noite longa. O alfanje
que sono e sonho ceifa devagar
mal se desenha, fino, ante a falange
das nuvens esquecidas de passar.

Os dois apenas, entre céu e terra,
sentimos o espetáculo do mundo,
feito de mar ausente e abstrata serra.

E calcamos em nós, sob o profundo
instinto de existir, outra mais pura
vontade de anular a criatura.

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Olhos que não enxergam…

Acostumei-me, durante muito tempo, a mirar fixamente, quando à janela, o desagradável muro fronteiro à minha casa. Ali está tudo: o vandalismo, a cromática insossa, o medo materializado em cercas cortantes… E eu, obsessivo, seria capaz de representá-lo, à mão, em nível de detalhamento impressionante. Acima, a poluição elétrica; ao fundo, a janela quebrada… Todos os dias reparo, e todos os dias, há anos, encontro a mesmíssima paisagem. E eis que descubro que, alçando a vista, há diferente…

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Quando ladeados o monumento que constitui a obra de Otto Maria Carpeaux e o restante da crítica literária brasileira, é impossível não se espantar de não haver um único estudo biográfico digno do grandioso intelectual que entregou à crítica brasileira sua única obra de valor universal. Silêncio. Penso o que ocorreria caso Carpeaux, em vez de radicar-se no Brasil, optasse pelos Estados Unidos e fizesse, em inglês, o que fez em língua portuguesa. O sorriso é automático… Mas por que o Brasil? Por que, aos quarenta anos, romper com a própria língua e dedicar-se a aprender e escrever num idioma até então desconhecido? E o dificílimo, para não dizer impossível, foi erigido: a estéril crítica literária nacional ganhou um colosso imortal de presente. Que fez dele? Nada, absolutamente nada…

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