Planilhas, planilhas…

Causa-me estranhamento o mundo ter existido por tanto tempo sem planilhas de controle. Às vezes me recuso a acreditar, mas, dos anos 80 do século passado — pelo menos — para trás, as pessoas viviam sem planilhas. Meu cérebro trava: como? Impossível! E convenço-me de que, deletando-me as planilhas, o meu lar imediatamente pegaria fogo. Não há tarefa rotineira que não exija uma planilha: desde às compras do supermercado ao acompanhamento de leituras. Controlar o peso, o nível de gordura corporal é importantíssimo. Os filmes assistidos, o fluxo de caixa mensal, a carteira de ativos, as horas em estudo de idiomas, as bebidas alcoólicas especiais consumidas ao longo dos anos, o planejamento de exercícios físicos diários… todas essas são planilhas obrigatórias, essenciais à vida. Há outras, várias outras. E espanta-me o seguinte: como escrever um livro sem uma planilha? Fosse elaborar um guia a detalhar o processo de escrita, o primeiro e obrigatório passo seria: criar uma planilha de acompanhamento, listar o planejamento dos capítulos, definir-lhes a extensão média e, só então, pensar no que escrever. Diria até que, em muitos casos, a planilha é anterior à ideia ou, ainda, a ideia só é possível com a planilha. Mundo estranho…

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Anoitecer, de Raimundo Correia

Outro belo soneto de Raimundo Correia:

Esbrazea o Occidente na agonia
O sol… Aves em bandos destacados,
Por ceus de ouro e de purpura raiados,
Fogem… Fecha-se a palpebra do dia.

Delineam-se, além, da serrania
Os vertices de chamma aureolados,
E em tudo, em torno, esbatem derramados
Uns tons suaves de melancholia…

Um mundo de vapores no ar fluctua…
Como uma informe nodoa, avulta e cresce
A sombra á proporção que a luz recúa…

A natureza apathica esmacce…
Pouco a pouco, entre as arvores, a lua
Surge tremula, tremula… Anoitece.

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Ser pobre ou ser escravo?

Questão perversa e obrigatória a todos os que, nascidos em berço modesto, encontram-lhes os interesses inclinados a algo impopular. Pergunto: será possível uma inteligência interessar-se por algo popular? Talvez, conquanto incomum. Pois que a questão continua vibrante, imponente: ser pobre ou ser escravo? Não consigo interpretá-la senão como um confronto entre liberdade e desejo: respondê-la é decidir entre independência ou submissão. Entretanto, boas notícias: abrir as portas à pobreza não quer dizer, necessariamente, que ela se irá alojar.

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Desejo: câncer da psique humana

É possível encontrar justificativas racionais para negar as soluções propostas pelos estoicos, pelos budistas, por Schopenhauer e tantos outros. Mas há uma verdade universal, presente também na filosofia cristã, referente ao desejo: é ele a praga, o câncer da psique humana, a fonte interminável de frustrações. E se, após cuidadosa análise psicológica, decidimos arrancá-lo pela raiz, desarraigando cada uma de nossas esperanças a enxadadas, livramo-nos de uma carga imensa, maligna e prejudicial. O problema é que o ser humano vive de sonhos, suporta a realidade na esperança de um futuro melhor. Exterminá-la, pois, é fazer com que a vida perca o brilho, é dar linha à indiferença, é negar a própria natureza, é automutilação. Pois bem: parece ser esse o caminho da paz.

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